1958
França
PublicaçãoIdiomas disponíveis
Português
Colaborador
Ícaro Vilaça
Contribuição para uma definição situacionista de jogo (IS n°1)
A notória confusão, tanto no vocabulário quanto na prática, que a noção de jogo traz consigo só pode ser resolvida se essa noção for considerada em seu movimento. As primitivas funções sociais do jogo, após dois séculos de sua negação provocada pela continua idealização da produção, já não se apresentam como meros resíduos corrompidos, misturados com formas inferiores oriundas das necessidades da atual organização dessa produção. Ao mesmo tempo, surgem tendências progressivas do jogo ligadas ao próprio desenvolvimento das forças produtivas.
A nova fase de afirmação do jogo deveria caracterizar-se pelo desaparecimento de todo elemento de competição. O fato de ganhar ou perder, até então quase inseparável da atividade lúdica, aparece ligado a todas as outras manifestações da tensão entre indivíduos quando buscam apropriar-se de bens. O sentimento da importância de ganhar no jogo, quer se trate de satisfação concretas ou na maioria das vezes ilusórias, é o mau produto de uma sociedade má. Sentimento esse naturalmente explorado por todas as forças conservadoras, que utilizam para disfarçar a monotonia e a atrocidade das condições de vida que impõem aos outros. Basta lembrar todas as reivindicações desvirtuadas pelo esporte de competição, que se estabeleceu sob uma forma moderna precisamente na Grã- Bretanha, com o desenvolvimento das manufaturas. Não apenas as multidões se identificam com jogadores profissionais ou clubes, que assumem papel mítico idêntico ao dos artistas de cinema vivendo por elas e ao dos políticos decidindo por elas, mas também a série infinita dos resultados dessa competição continua a apaixonar os observadores. A participação direta num jogo, mesmo nos que requerem alguma habilidade intelectual, perde todo o interesse quando se trata de aceitar a competição em si, dentro de um quadro de regras fixas. Exemplo do desprezo contemporâneo votado a idéia de jogo é a pretensiosa constatação que abre o Breviário de Xadrez de Tartakower. “ O jogo de xadrez é universalmente reconhecido como o rei dos jogos”.
O elemento de competições deve desaparecer em favor de um conceito mais realmente coletivo de jogo: a criação comum das ambiências lúdicas escolhidas. A distinção central a superar é a que se estabelece entre jogo e vida corriqueira, considerando-se o jogo como uma exceção isolada e provisória. Segundo J. Huizinga, “o jogo realiza, na imperfeição do mundo e na confusão da vida, uma perfeição temporária e limitada”. A vida corriqueira, condicionada até então pelo problema da subsistência, pode ser dominada racionalmente – possibilidade que está no âmago de todos os conflitos de nossa época – e o jogo, rompendo de forma radical com um tempo e um espaço lúdicos acanhados, deve tomar conta da vida inteira. A perfeição não deve ser a sua finalidade, se tal perfeição significar uma construção estática oposta à vida. Mas sempre é possível tentar atingir a perfeição desta bela confusão que é a vida. O barroco, que Eugénio d’Ors qualificava, no desejo de limitá-lo definitivamente, de “vacância da historia”, assim como o que foi organização após o barroco vão ocupar um grande espaço no reino vizinho ao lazer.
Nessa perspectiva histórica, o jogo – experimentação permanente de novidades lúdicas – nunca aparece fora da ética, da questão do sentido da vida. O único sucesso que alguém pode conceber no jogo é o sucesso imediato de sua ambiência e o aumento constante de seus poderes. Enquanto, em sua presente coexistência com os resíduos da fase decadente o jogo não consegue libertar-se completamente do aspecto competitivo, seu objetivo deve ser o de, no mínimo, provocar condições favoráveis para viver a vida de forma direta. Neste sentido, ele é também luta e representação: luta por uma vida a altura do desejo, representação concreta dessa vida.
O jogo é percebido como fictício por sua existência marginal se comparado à estafante realidade do trabalho, mas para os situacionistas o trabalho consiste precisamente em preparar futuras possibilidades lúdicas. Talvez surja a tentação de menosprezar a Internacional Situacionista porque ela apresenta aspectos de um grande jogo. “No entanto, diz Huizinga, já lembramos que a noção de “apenas jogar” não exclui de modo algum a possibilidade de realizar esse “apenas jogar” com muita seriedade...
(Internacional Situacionista IS nº 1, junho de 1958)
Fonte(s): BERENSTEIN JACQUES, Paola. Apologia da Deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
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