1958
França
PublicaçãoIdiomas disponíveis
Português
Colaborador
Ícaro Vilaça
Formulário para um Novo Urbanismo (IS n°1)
Majestade, sou de outro país.
Andar pela cidade não tem graça, já não existe templo do sol. Por entre as pernas das passantes, os dadaístas queriam encontrar uma chave inglesa, e os surrealistas uma taça de cristal. Não deu certo. Sabemos ler nos rostos todas as promessas, derradeiro estágio da morfologia. A poesia dos cartazes durou vinte anos. Andar pela cidade não tem graça, é preciso fazer um tremendo esforço para ainda encontrar algo de misterioso nas tabuletas de rua, última expressão do humor e da poesia:
Bains-Douches dês Partriarches [ Banhos-Duhas dos Patriatcas]
Machines à trancher lês viandes [ Máquinas de cortar carnes]
Zôo Notre-Dame [Zoológico Nossa Senhora]
Pharmacie dês Sportes [Farmácia dos Esportes]
Alimentation dês Martyrs [Mercearia dos Mártires]
Béton translucide [Cimento translúcido]
Scierie Main-d'or [Serraria Mão-de-ouro]
Centre de récupération fonctionnelle [Centro de recuperação funcional]
Ambulance Saint-Anne [Ambulância Santa Ana]
Cinquième Avenue Café [Café Quinta Avenida]
Rue dês Volontaires Prolongée [Rua dos Voluntários Ampliada]
Pension de famille dans lê jardin [Pensão de família no quintal]
Hotel dês Étrangers [Hotel dos Estrangeiros]
Rue Sauvage [Rua Selvagem]
E a piscina da Rua das Mocinhas. E a delegacia de política da Rua do Encontro. A clínica médico-cirúrgica e a agencia de emprego do Quai dês Orfèvres. As flores artificiais da Rua do Sol. O Hotel dos Porões do Castelo, o Bar do Oceano e o Café do Vai-e-vem. O Hotel da Época.
E a estranha estátua do Dr. Philippe Pinel, benfeitor dos débeis mentais, nas derradeiras noites de verão. Explorar Paris.
E tu, esquecida, tuas lembranças destruídas por todos os lamentos do mapa-múndi, abandonada no Caves Rouges de Pali-Kao, sem música e sem geografia, já não partindo para a hacienda onde as raízes pensam na criança e onde o vinho termina em fábulas de calendário. Agora, acabou. Não verás mais a hacienda. Ela não existe.
É preciso construir a hacienda.
Todas as cidades são geológicas, e não é possível dar dois passos sem esbarrar em fantasmas cercados de todo o prestígio lendário. Vivemos numa paisagem fechada cujos pontos de referência remetem sempre ao passado. Certos ângulos moventes, certas perspectivas fugazes permitem-nos entrever concepções originais do espaço, mas essa visão permanece parcelar. É preciso procurá-la nos lugares mágicos dos contos folclóricos e dos textos surrealistas: castelos, muros intermináveis, barezinhos esquecidos, caverna do mamute, espelho dos cassinos.
Essas imagens caducas conservam um certo poder de catálise, mas não se pode usá-la num urbanismo simbólico sem rejuvenescê-las, sem lhes atribuir um novo significado. Nossa mente povoada por velhos arquétipos parece muito atrasada diante das máquinas aperfeiçoadas. As diversas tentativas de integração da ciência moderna em novos mitos são insuficientes. O abstrato tem invadido todas as artes, em particular a arquitetura de hoje. O fato plástico em estado puro, sem ligação com os acontecimentos, inanimados, descansa o olhar e o arrefece. Alhures encontram-se outras belezas atomizadas e, cada vez mais distante, a terra das sínteses prometidas. Todos hesitam entre o passado que vive no afetivo e o futuro que já nasce morto.
Não prolongaremos as civilizações mecanizadas e a arquitetura fria que levam, afinal, aos lazeres maçantes.
Nossa proposta é inventar novos cenários moventes.
[...]
A escuridão recua diante da iluminação e as oscilações climáticas, diante do ar condicionado: a noite e o verão perdem o encanto, e o alvorecer desaparece. O homem das cidades julga que se afasta da realidade cósmica mas nem por isso consegue sonhar mais. O motivo é evidente: o sonho tem seu ponto de partida na realidade e nela se realiza.
O último estágio da técnica permite o contato permanente do indivíduo com a realidade cósmica, suprimindo todos os inconvenientes desse contato. O telhado de vidro deixa ver as estrelas e a chuva. A casa móvel gira com o sol. As paredes de correr permitem que a vegetação se misture à vida. Montada sobre rodas, uma casa pode ir pela manhã até o mar e voltar à noite para a mata.
A arquitetura é o meio mais simples de articular tempo e espaço, de modular a realidade, de fazer sonhar. Não se trata apenas de articulação e de modulação plásticas, expressão fugaz da beleza. Mas de modulação influencial, que se inscreve na eterna curva dos desejos humanos e do progresso na realização desses desejos.
A arquitetura de amanhã será portanto um meio de modificar os atuais conceitos de tempo e de espaço. Será um meio para conhecer e agir.
O complexo arquitetônico será passível de modificação. Seu aspecto pode mudar em parte ou no todo, segundo a vontade de seus moradores.
[...]
As coletividades de outrora ofereciam as massas uma verdade absoluta e exemplos míticos indiscutíveis. A entrada da noção de relatividade do espírito moderno permite conjeturar o lado EXPERIMENTAL da próxima civilização, embora o termo não me pareça satisfatório. Digamos mais flexível, mais "divertido". Na base dessa civilização móvel, a arquitetura será - pelo menos no inicio - um meio de experimentar as mil maneiras de modificar a vida, em busca de uma síntese que só pode ser lendária.
O planeta foi invadido por uma doença mental: a banalização. Todos estão hipnotizados pela produção e pelo conforto - esgoto, elevador, banheiro, máquina de lavar.
Esse estado de fato, que nasceu de um protesto contra a miséria, ultrapassa seu objetivo primeiro -libertar o homem das preocupações materiais - para se tornar uma imagem obsessiva no imediato. Entre o amor e o triturador automático de lixo, a juventude de todos os países prefere o triturador. Uma reviravolta completa das mentes tornou-se indispensável, pela revelação de desejos esquecidos e pela criação de desejos totalmente novos. E por uma propaganda intensiva em favor desses desejos.
Já indicamos a necessidade de construir situações como um dos desejos básicos sobre os quais se há de estabelecer a próxima civilização. Essa necessidade absoluta de criação sempre esteve ligada à necessidade de jogar com a arquitetura, o tempo e o espaço.
[...]
De Chirico foi um dos mais importantes precursores da arquitetura. Dedicou-se aos problemas das ausências e presenças através do tempo e do espaço.
É sabido que um objeto, não notado conscientemente quando se faz uma primeira visita, provoca, por sua ausência nas visitas seguintes, uma impressão indefinível: por uma correção no tempo, a ausência do objeto torna-se presença sensível. E mais: embora fique geralmente indefinida, a qualidade da impressão varia de acordo com a natureza do objeto retirado e com a importância que o visitante lhe confere, o que pode ir da alegria serena até o terror (pouco importa que no caso em questão o veículo do estado de alma seja a memória. Escolhi esse exemplo por comodidade).
Na pintura de De Chirico (período das Arcadas) um espaço vazio cria um tempo bem preenchido. Não é difícil imaginar o futuro que reservaremos a tais arquitetos e quais serão suas influências sobre as multidões. Só podemos desprezar hoje um século que relega maquetes desse tipo a pretensos museus.
Essa nova visão do tempo e do espaço que será a base teórica das construções futuras ainda não está formulada e nunca o estará inteiramente se antes não forem experimentados os comportamentos nas cidades destinadas a essa finalidade, onde ficariam reunidas sistematicamente, além de estabelecimentos indispensáveis a um mínimo de conforto e de segurança, construções marcadas por um grande poder evocador e influente, edifícios simbólicos representando os desejos, forças, acontecimentos passados, presentes e futuros. A cada dia torna-se mais urgente uma ampliação racional dos antigos sistemas religiosos, dos velhos contos e sobretudo da psicanálise, em proveito da arquitetura, à medida que desaparecem os motivos de apaixonar-se.
De certa forma, cada qual habitará sua "catedral" pessoal. Haverá aposentos que provocarão mais sonhos que as drogas, e casas onde só se poderá amar. E outras casas que vão despertar a curiosidade dos viajantes...
Esse projeto é comparável aos jardins chineses e japoneses em trompel'oeil - com a diferença que estes jardins não são feitos para neles se viver completamente - ou ao ridículo labirinto do Jardim des Plantes em Paris onde à entrada existe um aviso (o cúmulo da estupidez, Ariadne deve ter perdido o emprego): È proibido brincar no labirinto.
Essa cidade pode ser imaginada sob a forma de uma reunião arbitrária de castelos, grutas, lagos etc. Seria o estágio barroco do urbanismo, considerado como meio de conhecimento. Mas essa fase teórica já está superada. Sabemos que é possível construir um prédio moderno nada parecido com um castelo medieval, mas que conserve e multiplique o poder poético do Castelo (pela manutenção de um mínimo estrito de linhas, pela transposição de outras, pela localização das aberturas, pela situação topográfica etc.).
Os bairros dessa cidade poderiam corresponder à lista de sentimentos que encontramos por acaso na vida cotidiana.
Bairro Bizarro - Bairro Feliz, reservado em especial à moradia - Bairro Nobre e Trágico (para crianças bem comportadas) - Bairro Histórico (museus, escolas) - Bairro Útil (hospitais, lojas de ferramentas) - Bairro Assustador etc. E um Astrolário que reuniria as espécies vegetais de acordo com as relações que elas mantêm com o ritmo estelar, jardim planetário comparável ao que o astrônomo Thomas tenta fazer em Viena no local chamado Laaer Berg. Indispensável para dar aos moradores uma consciência do cósmico. Talvez também um Bairro da Morte, não para as pessoas nele morrerem mas para viverem em paz, e, no caso, penso no México e num princípio de crueldade na inocência, que aprecio cada dia mais.
O Bairro Assustador, por exemplo, supriria com vantagem os buracos, bocas de inferno, que muitos povos possuíam outrora em suas capitais: simbolizavam as forças maléficas da vida. O Bairro Assustador não teria a necessidade de conter perigos reais, como armadilhas, calabouços ou minas. Teria um acesso complicado, uma decoração horrorosa (apitos estridentes, sinais de alarme, sirenes constantes em intervalos irregulares, esculturas monstruosas, móbiles mecânicos com motor, chamados Auto-Móbiles) e pouca iluminação à noite, embora violentamente iluminado de dia pelo uso abusivo do fenômeno de reverberação. No centro, a "Praça do Móbile Medonho". Quando no mercado há superabundância de um produto, esse produto perde a valia: ao explorar o Bairro Assustador, crianças e adultos perderiam o medo dos fatos angustiantes da vida e levariam tudo na brincadeira.
A principal atividade dos moradores será a DERIVA CONTÍNUA. A mudança de paisagem de hora em hora vai levar ao completo desarraigamento.
[...]
Mais tarde, pelo inevitável desgaste dos gestos, essa deriva deixará parcialmente o domínio do vivido pelo da representação.
[...]
A objeção econômica não resiste à primeira olhadela. È sabido que, quanto mais um lugar for destinado à liberdade de jogo, mais influirá sobre o comportamento e maior será sua força de atração. Prova disso é o imenso prestígio de Mônaco e de Las Vegas. E de Reno, caricatura de união livre. Trata-se contudo de meros jogos do dinheiro. Essa primeira cidade experimental viveria com fartura de um turismo tolerado e controlado. As subseqüentes atividades e produções de vanguarda surgiriam por si mesmas. Em poucos anos ela se tornaria a capital intelectual do mundo, reconhecida por todos como tal.
Gilles Ivain - IS nº1, junho de 1958
A Internacional Letrista havia adotado em outubro de 1953 este relatório de Gilles Ivain [pseudônimo de Ivan Chtcheglov] sobre o urbanismo, elemento decisivo da nova orientação assumida então pela vanguarda experimental. O presente texto foi estabelecido a partir de duas versões sucessivas do manuscrito, comportando ligeiras diferenças de formulação. Conservadas nos arquivos da IL, que se tornaram depois as peças de número 103 e 108 dos Arquivos Situacionistas.
Fonte(s): BERENSTEIN JACQUES, Paola. Apologia da Deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
<- Voltar