1958
França
PublicaçãoIdiomas disponíveis
Português
Colaborador
Ícaro Vilaça
Os situacionistas e a automatização (IS n°1)
É espantoso que quase ninguém, até o momento, tenha ousado levar a idéia de automatização até as suas últimas conseqüências. Do que se deduz que faltam verdadeiras perspectivas. A impressão é que os engenheiros, cientistas e sociólogos tentam introduzir clandestinamente a automatização na sociedade.
Mas a automatização está agora no cerne do problema da denominação socialista sobre a produção e no da primazia do lazer sobre o tempo de trabalho. A questão da automatização é a que concentra mais possibilidades positivas e negativas.
A finalidade do socialismo é a abundância: o maior número de bens para o maior número de pessoas, o que implica estatisticamente a redução até o improvável do surgimento de imprevistos. O aumento do número de bens reduz o valor de cada um. Essa desvalorização de todos os bens humanos num estágio de neutralidade por assim dizer perfeita será o resultado inevitável de um desenvolvimento puramente científico do socialismo. É lamentável que muitos intelectuais não ultrapassem essa idéia da reprodução mecânica e preparem a adaptação do homem a esse futuro incolor e simétrico. É por isso que os artistas, especializados na busca do que é único, se mostram hostis (e são cada vez mais numerosos) ao socialismo. Enquanto isso, as condutas do socialismo mantêm sua desconfiança para com todas as manifestações artísticas que dão mostras de vigor ou originalidade.
Arraigados em suas posições conformistas, uns e outros revelam certo mau humor contra a automatização, que ameaça profundamente seus conceitos econômicos e culturais. Em relação a ela, existe em todas as tendências “de vanguarda” um derrotismo ou, no mínimo, uma depreciação dos elementos positivos de um futuro que o advento da automatização revela bruscamente como próximo. Ao mesmo tempo, as forças reacionárias ostentam um otimismo idiota.
Um episódio significativo: o ano passado, na revista Quatrième Internationale, o militante marxista Livio Maitan contava que um padre italiano já havia sugerido a necessidade de uma segunda missa semanal, justificada pelo aumento do tempo livre. Maitan respondia: “O erro está em pensar que o homem da nova sociedade será o mesmo da sociedade atual, quando na realidade ele terá necessidades e exigências completamente diferentes que mal podemos imaginar”. Mas Maitan se engana quando deixa a um vago futuro as novas exigências “ que mal podemos imaginar”. O papel dialético do espírito é o de levar o possível para formas desejáveis. Maitan esquece que sempre “os elementos de uma sociedade nova se formam na sociedade antiga”, como afirma o Manifesto Comunista. Elementos de uma vida nova devem já estar em formação entre nós – na área da cultura – e deles nos devemos servir para esquentar o debate.
O socialismo, que busca a mais completa liberação das energias e capacidade existentes em cada indivíduo, será obrigado a ver na automatização uma tendência anti-progressista em si, tornada progressista apenas por sua relação com novos desafios capazes de exteriorizar as energias latentes do homem.
Se, como pretendem os cientistas e os técnicos, a automatização é um novo meio de liberação do homem, ela deve implicar uma superação das atividades humanas anteriores. Isso obriga a imaginação ativa do homem a superar a realização da própria automatização. Onde encontrar tais perspectivas que tornem o homem senhor e não escravo da automatização?
Louis Salleron explica, em seu estudo L’Automation, que ela “como quase sempre em matéria de progresso... acrescenta mais do que substitui ou suprime”. O que a automatização, em si mesma, acrescenta à possibilidade de agir do homem? O que sabemos é que ela o suprime completamente no seu próprio terreno.
A crise da industrialização é uma crise de consumo e de produção. A crise de produção é mais importante que a crise de consumo, pois esta é condicionada pela primeira. Transposto para o plano individual, isso equivale à tese do: há mais prazer em dar que em receber, em ser capaz de acrescentar que de suprimir. A automatização possui assim duas perspectivas opostas: retira do indivíduo qualquer possibilidade de acrescentar algo de pessoal à produção automatizada que é uma fixação do progresso, e ao mesmo tempo economiza energias humanas maciçamente liberadas das atividades reprodutivas e não “criativas”. O valor da automatização depende, portanto dos projetos que a ultrapassem e que liberam novas energias humanas num plano superior.
A atividade experimental na cultura tem, hoje, esse campo incomparável. E a atitude derrotista neste caso, a desistência diante das possibilidades da época, é sintomática das antigas vanguardas que preferem ficar, como escreve Edgar Morin, “roendo um osso do passado”. Um surrealista chamado Benayoun diz no nº 2 do Surréalisme même, última expressão desse movimento: “ O problema do lazer começa a atormentar os sociólogos... Já não se precisa de técnicos, mas sim de palhaços, cantores de sucesso, bailarinas, contorcionistas. Um dia de trabalho para seis de descanso: o equilíbrio entre o sério e o fútil, entre ócio e trabalho corre o risco de se inverter...o”trabalhador” desocupado será imbecilizado por uma televisão fanatizante, avassaladora, sem imaginação, à cata de talentos”. Esse surrealista não percebe que uma semana de seis dias de descanso não vai trazer uma “inversão de equilíbrio” entre o fútil e o sério, mas uma mudança de natureza tanto do sério quanto do fútil. Ele só espera por qüiproquós, ridículos imprevistos do mundo que ele prefigura, à imagem do surrealismo velhusco, como uma espécie de teatro de revista intocável. Por que esse futuro tem de ser a hipertrofia das baixezas do presente? E por que terá ele de ser “sem idéias”? Quer isso dizer que ficará sem idéias surrealistas de 1924 melhoradas em 1936? É provável. Ou quer dizer que os imitadores do surrealismo estão sem idéias? Isso já sabemos!
Os novos lazeres parecem um abismo que a sociedade atual procura preencher apenas com novos pseudo-jogos sem consistência. Esses lazeres são também a base sobre a qual se pode erguer a mais grandiosa construção cultural jamais imaginada. É evidente que tal objetivo não convém ao círculo de interesse dos adeptos da automatização. É até antagônico à tendência direta da automatização. Se quisermos discutir com engenheiros, convém entrar em sua área de interesse. Maldonado, que dirige atualmente em Ulm a Hoschschule für Gestaltung, explica que o desenvolvimento da automatização está comprometido porque os jovens não sentem entusiasmo para lançar-se na via politécnica, com exceção dos especialistas nos próprios fins da automatização, desprovidos de uma perspectiva geral da cultura. Mas Maldonado, que deveria mostrar essa perspectiva geral, ignora-a completamente: a automatização só se pode desenvolver rapidamente a partir do momento em que estabelecer como objetivo uma perspectiva contrária a seu próprio estabelecimento, e se souberem realizar tal perspectiva geral à medida que a automatização se desenvolva.
Maldonado propõe o contrário: primeiro estabelecer a automatização, e depois o seu uso. Seria possível discutir o procedimento se o objetivo não fosse precisamente a automatização, porque ela não é uma ação em dado domínio, capaz de provocar uma anti-ação. É a neutralização de um domínio, que vem a neutralizar também os campos exteriores a esse domínio se ações opostas não forem empreendidas concomitantemente.
Pierre Drouin, ao falar no Le Monde de 5 de janeiro de 1957 sobre a extensão dos hobbies como realização das virtualidades que os trabalhadores já não conseguem utilizar em sua atividade profissional, conclui que em cada homem “há um criador que dormita”. Essa velha banalidade é muitíssimo atual se a ligarmos às reais possibilidades materiais de nossa época. O criador que dormita precisa acordar, e seu estado de vigília pode ser chamado situacionista.
A idéia de padronização é um esforço para reduzir e simplificar, de modo mais eqüitativo, o maior número de necessidades humanas. Compete-nos fazer com que a padronização abra domínios de experiência mais interessantes que os que ela fecha. Conforme o resultado, pode-se chegar ao total embrutecimento da vida humana ou à descoberta permanente de novos desejos. Mas, no contexto opressivo do mundo atual, esses novos desejos não se manifestarão espontaneamente. É indispensável uma ação comum para os detectar, manifestar e realizar.
Asger Jorn IS nº 1, junho de 1958.
Fonte(s): BERENSTEIN JACQUES, Paola. Apologia da Deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
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