1989
Estados Unidos
PublicaçãoIdiomas disponíveis
Português
Colaborador
Jiovana dos Santos Santana
Prefácio à edição comemorativa: Libertem o espírito de Brasília (texto completo)
James Holston, 2010:
“Descobri aquilo que os pioneiros candangos chamavam de o ‘espírito de Brasília’ no começo da década de 1980, quando vivi durante anos no Distrito Federal fazendo a pesquisa de campo para este livro, publicado originalmente em 1989. Sua reedição no Brasil na ocasião do cinquentenário da cidade me oferece a oportunidade de enfatizar um aspecto importante. Entre outros temas, o livro sustenta que os extraordinários privilégios e desigualdades de Brasília – segundo vários indicadores, a cidade mais desigual do Brasil na época da minha pesquisa – foram gerados não necessariamente pelo fato subsequentes à sua inauguração, mas sobretudo pelas premissas dos modelos modernistas urbanísticos, arquitetônicos e burocráticos de vida citadina que guiaram sua fundação.
Ao longo dos anos, tornei-me conhecido como um "crítico de Brasília". Ainda que o seja, continuo um vigoroso defensor daquilo que os candangos com os quais trabalhei para investigar a história da sua cidade descreviam como sendo o espírito de Brasília: sua invocação para romper com o passado, para ousar imaginar um futuro diferente, para abraçar o moderno como um campo para experimento e risco – um espírito que os inspirou a criar uma cidade de tantos modos inovadora, para além da sua arquitetura e urbanismo.
Desde os dias pioneiros de Brasília, no entanto, esse espírito tem sido sepultado sob camadas de preservação legal que o impedem de inspirar novas gerações de cidadãos brasilienses, que impedem esses cidadãos de o usarem para tornar a cidade viva com suas próprias experiências. Ele continua, em vez disso, algemado aos serviços de alguns poucos velhos pioneiros e seus herdeiros, para quem esse espírito serve apenas à sua visão de Brasília. Eles a governam como gerontocratas, reivindicando o privilégio e a exceção para de vez em quando retirá-lo da sua tumba a fim de justificar um projeto de seu interesse. Ofereço esses comentários como um protesto contra essa prisão e seus carcereiros. Ofereço-os como um apelo aos cidadãos de Brasília para reviver a cidade como um espaço nacional especial de experimentação, dedicado à solução de importantes problemas da vida urbana contemporânea.
Mas antes me deixem descrever esse espírito, porque receio que muitos possam ter se esquecido de que isso já definiu o que havia de essencial e glorioso a respeito da cidade. Brasília sempre foi ao mesmo tempo radicalmente estranha e familiar, separada e integrada ao resto do Brasil. Justificando seu apoio ao Plano Piloto modernista de Lucio Costa para a cidade, o presidente Kubitschek argumentou, em seu livro de memórias, Por que Construí Brasília, que, "devendo constituir a base de irradiação de um sistema desbravador (de desenvolvimento) (…), (Brasília) teria de ser, forçosamente, uma metrópole com características diferentes, que ignorasse a realidade contemporânea e se voltasse, com todos os seus elementos constitutivos, para o futuro". A Brasília modernista perturbou o mundo familiar da década de 50, com sua exibição de modernidade, regulamentação e progresso, tanto que a sua primeira geração de habitantes cunhou um termo especial, brasilite, para descrever o choque do novo. Muitos imaginavam que o universo de inovações da cidade modernista – não só sua arquitetura e seus vastos espaços sem esquinas nem praças, mas também seu novo sistema educacional, a ausência de propriedades privadas, as distribuições igualitárias de recursos aos funcionários, entre muitas outras – produziria um estranhamento radical que teria como resultado, nas palavras do relatório de 1963 da Novacap a respeito da sua administração da capital, publicado na sua revista Brasília, "a inexistência de discriminação de classes sociais (…), e assim (seria) educada, no Planalto, a infância que construirá o Brasil de amanhã, já que Brasília é o glorioso berço de uma nova civilização.
Se essa Brasília parece incongruentemente brasileira, sua construção e desenvolvimento expressam ao mesmo tempo um jeito notavelmente brasileiro de fazer as coisas: um sentido de invenção, uma aptidão para a improvisação, um desejo de superar com saltos. É a necessidade de ser moderno que vê a falta de recursos como uma oportunidade para a inovação. Afinal, os pioneiros construíram Brasília em pouco mais de três anos. Eles transformaram um lugar no meio do nada, marcado com um X no chão, não só em uma cidade habitável em tempo recorde, mas também naquela que apresentou ao mundo todo em 1960 o mais moderno urbanismo. Para isso, empregaram táticas de bricolagem; experimentaram em todos os campos. Por isso, reproduziram no pioneirismo de Brasília o distinto estilo do Brasil de inventar sua modernidade.
Não é surpreendente que essa distinção abunde em contradições. Por exemplo, como a capital nacional tinha de ser diferente, os planejadores de Brasília pretendiam excluir características indesejadas "do resto do Brasil". Daí que o plano piloto tenha proibido o desenvolvimento de periferias urbanas para os pobres, típicas de outras cidades. Mesmo assim, ainda antes da inauguração da capital, em 1960, as políticas públicas já haviam criado deliberadamente uma periferia empobrecida de cidades-satélite, "abrasileirando" suas fundações. Entretanto, a cidade regional resultante – o privilegiado Plano Piloto e suas periferias – não reproduz simplesmente o Brasil ao seu redor, que os planejadores buscaram negar. Nas suas combinações do radicalmente diferente e do familiar, Brasília continua distinta na constelação de cidades brasileiras.
Essa qualidade especial deriva menos da identidade de Brasília como capital das capitais do que das suas concepções fundadoras como uma cidade experimental, uma cidade projetada para arriscar algo novo – precisamente a característica fundadora que seus pioneiros chamaram de "o espírito de Brasília". Esse talento para inovar estruturou a cidade com um novo sentido de espaço, tempo e propósito nacionais, que se tornaria "uma base de irradiação", como disse Kubitschek, a fim de transformar toda a nação na qual foi inserida. Daí o regime de trabalho árduo que construiu a capital ter sido conhecido nacionalmente como "o ritmo de Brasília", definido como uma construção nacional 36 horas por dia – "doze durante o dia, doze à noite, e doze pelo entusiasmo". Isso expressa perfeitamente a nova invenção espaço-tempo da modernidade de Brasília, a qual articula a possibilidade de mudar o curso da história, acelerando o tempo e impulsionando o Brasil para um futuro radiante.
E ssa nova concepção motivou os candangos a inovar em todos os domínios da construção e organização da cidade. Se hoje a maioria de nós celebra as invenções da arquitetura e do planejamento urbano de Brasília, é só porque as outras foram menos óbvias. A experimentação inspirou as escolas da cidade, seus hospitais, sistemas de tráfego, organização comunitária, distribuição da propriedade, administração burocrática, abastecimento de água, saneamento básico, culto religioso, agricultura, arte, dança, teatro, música e outras coisas. Os pioneiros acreditavam que os experimentos de Brasília introduziriam novos hábitos sociais, instituições e padrões como modelos que transformariam tudo ao seu redor. Eles acreditavam em fazer a vida urbana brasiliense diferente, não pelo exotismo, mas para estabelecer uma arena de experimentação na qual se resolveriam importantes problemas nacionais.
Ao avaliar essas iniciativas, fica claro que alguns aspectos deram certo e outros fracassaram. É preciso enfatizar, porém, que tal resultado é característico de qualquer experimento significativo. O que é relevante é que os pioneiros ousaram pensar experimentalmente tanto em escala local quanto nacional e ofereceram seus resultados para avaliação, de modo que pudéssemos aprender com eles e desenvolvê-los mais. O importante na avaliação do pioneirismo de Brasília é que tanto os sucessos quanto os fracassos derivam da mesma fonte, a saber, seu espírito de se arriscar à inovação.
Se o espírito de Brasília é, portanto, o do experimento, não é perverso que essa cidade esteja congelada no tempo, que toda a área urbana do Plano Piloto seja legalmente tombada por camadas locais, nacionais e internacionais de preservação jurídica? Se essa cidade experimental se tornou assim um memorial, que memória ela registra? Um memorial nunca conta a história inteira. Em vez disso, ele seleciona certas condições que os autores querem preservar e ignora outras. Se o espírito de um lugar – o que os romanos chamavam de genius loci – consiste no que é colocado e deslocado na memória coletiva, será que o genius de Brasília foi traído pela preservação? Pior, foi traído por um punhado de fundadores que, ao preservar a cidade como seu próprio memorial, negam às gerações subsequentes de cidadãos brasilienses o seu direito à cidade, a oportunidade de fazê-la sua e construir a cidade que eles desejam habitar, sua chance de estender esse espírito de experimentação para sua própria vida e seu próprio tempo?
Na verdade, essas questões emergiram logo no começo da história de Brasília. Elas apareceram em conflitos decisivos nos quais planejadores e administradores estabeleceram a imposição do modelo Costa/Niemeyer/Ciam (a sigla para os Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, criados em 1928 por Le Corbusier e outros) como um meio de suprimir a inevitável insurgência de processos inesperados e contraditórios – exemplos bem conhecidos envolvem o repúdio ao projeto antirruas dos setores comerciais locais pelos moradores das primeiras superquadras e as "invasões" de operários pobres da construção civil no Plano Piloto, o que levou à sua remoção para as cidades-satélite (e à criação de periferias das periferias). O problema com esse regime é que ele incorpora todas as facetas da vida experimental de Brasília sob os ditames de apenas uma, que era experimental na década de 50, a da arquitetura e planejamento modernistas. Afinal, o espírito de Brasília inspirou as expressões particulares de Costa e Niemeyer. Portanto, essas expressões não definem o limite do espírito; em vez disso, abrangem-no. Não deveria, também, continuar inspirando outros?
Brasília hoje é preservada por muitas camadas legais. O que é tombado é o conceito urbano original do projeto de Costa (1957), o Plano Piloto, mas não os bairros do Lago nem as periferias. De fato, Brasília nasceu preservada, quando o Plano Piloto se tornou lei com a inauguração da cidade (Lei nº 3751, artigo 38, abril de 1960).
Desde então, foi protegida por três camadas legais adicionais. Em 1987, o governo do Distrito Federal regulamentou o artigo 38 por meio do Decreto nº 10829, dando àquele artigo uma nova especificação e aplicação. Também em 1987, Brasília recebeu uma inédita proteção internacional como resultado de uma intensa campanha brasileira: a Unesco garantiu sua preservação ao inscrever o Plano Piloto (inclusive os bairros do Lago) na sua Lista do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural. É a maior área urbana do mundo e a única cidade viva contemporânea tão preservada. Além disso, é um dos poucos locais do século XX selecionados para a lista, junto com Auschwitz, o Memorial da Paz de Hiroshima e a Bauhaus em Weimar e Dessau. Finalmente, o governo brasileiro declarou Brasília tombada em 1990, inscrevendo-a no Livro do Tombo Histórico, uma inscrição regulamentada por atos do Secretariado do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) e do Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC). O IBPC definiu tal preservação em uma publicação oficial, Patrimônio Cultural, em 1992: "Qualquer alteração no gabarito dos prédios, no plano dos eixos, avenidas e lotes, no uso e nas funções dos lotes e nas áreas verdes dentro do perímetro preservado deveria, em princípio, ser evitada. Alterações necessárias deveriam ser profundamente estudadas e cuidadosamente executadas para garantir a preservação das características essenciais do Plano Piloto e a sua qualidade de vida".
É razoável argumentar que a excepcional "qualidade de vida" do Plano Piloto está na verdade arraigada numa história de extraordinária desigualdade e estratificação (excepcional até pelos padrões brasileiros), baseada em privilégios exclusivos, e que mantê-la custa à nação quantias exorbitantes. Portanto, não é o caso de que a legislação que fixa tal "qualidade de vida" seja senão um meio de usar recursos públicos para preservar o privilégio das elites à custa de outros cidadãos – na verdade, que estabeleça uma tirania das elites por meio da lei e de conselhos de planejamento, e dê poderes a uma gerontocracia de fundadores para manter sua visão, enquanto priva as gerações mais jovens da oportunidade de definir a sua própria? Além do mais, a preservação de Brasília conta uma história muito parcial, a de seus planejadores e arquitetos de elite, mas não a dos operários que construíram a cidade e se rebelaram contra a sua exclusão. Ela também negligencia a história de funcionários que desenvolveram propostas novas, mas não arquitetônicas, para a vida urbana. Deveria sua preservação comemorar tal privilégio social e espacial?
Sem dúvida, debater prós e contras dessas afirmações desencadearia uma torrente de paixões, sem necessariamente chegar a uma conclusão completamente satisfatória. Talvez menos polêmico fosse concluir que não há menção, nesses pronunciamentos a respeito da preservação de Brasília, àquilo que na minha opinião é a mais importante das suas "características essenciais", ou seja, seu espírito de invenção. Se esse espírito é essencial, e se a preservação se destina a proteger o essencial, então no mínimo o tombamento deveria preservar Brasília como um campo de experimentação, de inovação contínua. Deveria também preservar Brasília como um lugar especial no Brasil onde esse tipo de risco é possível. Congelar Brasília em um momento trai esse espírito.
Minha sugestão não inclui de forma alguma entregar o Plano Piloto às forças do mercado e à especulação imobiliária. Em vez disso, significa promover experimentos controlados em todos os aspectos do urbanismo, incluindo a habitação, a educação, os serviços médicos, o transporte e o governo. Essas iniciativas vão necessariamente responder ao Plano Piloto de Costa, mas também podem partir dele para a consideração de novos problemas. Dessa forma, os planejadores poderiam preservar muitos aspectos da cidade modernista, ao mesmo tempo em que permitiriam que Brasília se tornasse uma cidade dotada de camadas com outras formas de urbanismo. O que faz com que cidades como Paris, Nova York, Roma, São Francisco e São Paulo sejam interessantes é que elas não se baseiam em apenas um modelo, mas são dotadas de camadas com visões de cada geração que viveu nelas. Essa justaposição torna visível a vitalidade da vida urbana como debates sobre o próprio urbanismo. A densidade desse registro produz cidades ricas em experiências e recompensa aqueles que as conhecem. Os vastos espaços vazios de Brasília precisam conter tais justaposições, cujo frisson é o melhor meio não só de nutrir a ideia fundadora de Brasília como um experimento, mas também de perpetuar a importância do seu experimento arquitetônico inicial, do seu projeto modernista Costa/Niemeyer/Ciam.
Além do mais, as leis de preservação de Brasília são na prática muitas vezes burladas pela negligência e pela corrupção, um destino comum demais da administração por estatuto. Muitas vezes ouvi moradores de Brasília argumentar que abandonar a preservação permitiria que o lobo da especulação do mercado devorasse a cidade. Minha resposta é que, inegavelmente, o tombamento falha em proteger a cidade dos males da especulação e da corrupção. Por exemplo, o crescimento do Setor Hoteleiro Norte nem se adéqua ao Plano Piloto, nem segue a lógica da competição de mercado, nem constitui um novo experimento de planejamento. Em vez disso, é um desenvolvimento caótico. Se na teoria o tombamento compromete o espírito de Brasília, na prática ele não evita efetivamente a corrupção do seu corpo. Entender como fazer o mercado contribuir para experimentos de urbanismo que tratem de problemas sociais importantes seria um feito inestimável.
Na década de 50, Brasília ousou ser uma inovação no urbanismo. Como a maioria dos experimentos significativos, assumiu os riscos de se submeter à avaliação da opinião pública. Hoje, continua sendo importante comemorar os experimentos particulares dos fundadores de Brasília, mas só no contexto de celebrar a ideia maior da modernidade como experimento e risco, que é o seu espírito. Transcorridos cinquenta anos da inauguração da cidade, é hora de libertar o espírito de Brasília.”
Fonte(s): HOLSTON, James. A cidade modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia / James Holston; tradução: Marcelo Coelho, 2 ed. Companhia das Letras: São Paulo, 2010.
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