1956
Brasil, Distrito Federal
Fato RelevanteIdiomas disponíveis
Português
Colaborador
Karine Souza
Cidade Livre (1956) / Núcleo Bandeirante (1961)
Um dia depois da inauguração de Brasília, o jornal Correio Braziliense dizia na manchete: "Núcleo Bandeirante é ilegal desde ontem". O fato de que continuasse a existir, com grande população, violava o plano da Novacap de transferir seus negociantes, empresas e empregados para o Plano Piloto, e de em seguida arrasar a cidade. Antes de 21 de abril, havia três tipos de moradores na Cidade Livre, no que tange aos direitos legais de se fixar ali temporariamente: aqueles empresários que tinham contratos, garantindo-lhes estabelecer empresas comerciais, mas obrigando-os a devolver seus terrenos à Novacap no momento da inauguração; os que pagavam aluguel aos empresários; e os favelados, que simplesmente invadiam terrenos. Depois de 21 de abril, do ponto de vista da Novacap, todos eram invasores.Os comerciantes resistiram à destruição da cidade, pois consideravam desastrosa economicamente uma mudança para o Plano Piloto. Naquele momento, suas perspectivas comerciais eram sem dúvida sombrias. O Plano Piloto mal estava habitado; suas áreas comerciais, sobretudo as da Asa Norte, eram dispersas e isoladas, e em toda parte seus edifícios estavam sujeitos a controles de planejamento estritos, que proibiam alterações de fachada ou expansões; mais importante ainda, o mercado era fortemente regulamentado. Em contraste, a Cidade Livre proporcionava atividade comercial sem regulamentos e uma quantidade de consumidores tanto em meio à própria população, quanto nas favelas ao redor. Do mesmo modo, os favelados encontravam na cidade empresarial sua principal fonte de bens, serviços, crédito e emprego. Esses interesses mútuos motivaram comerciantes e favelados a juntarem forças na campanha pela "fixação" da Cidade Livre. Esta luta que contrapôs as forças a favor da fixação, lideradas pela Novacap e pela prefeitura do Distrito Federal. Esta, hierarquicamente superior à Novacap, havia sido criada com a inauguração da capital e tinha, como seu primeiro prefeito, o antigo presidente da Novacap.
A ACB apresentou à Novacap uma lista de reivindicações que, com nitidez, expressa as questões em jogo. "Em nome do povo" requeria-se:
1) A integração do Núcleo Bandeirante ao plano de urbanização de Brasília, na condição de bairro da futura capital da República, com o nome de Bairro Bernardo Sayão.
2) Que a Novacap elaborasse um plano, com a cooperação da ACB, para garantir, entre outras coisas, o seguinte:
a) venda, ao proprietário das melhorias, do respectivo terreno que ocupa;
b) que essa venda seja feita a preço razoável, sem entrada, e a longo prazo;
c) que os resultados da venda destes terrenos sejam aplicados na urbanização do futuro Bairro Bernardo Sayão;
d) que apenas um terreno esteja disponível a cada proprietário, por melhorias que tenham sido realmente feitas;
e) que continua reservado à Novacap o direito de vender ou não um terreno com prédio alugado, desde que seu dono legítimo nunca tenha residido nele e não tenha nunca residido em Brasília;
f)[que] a Novacap irá garantir a cada pioneiro morador do Núcleo Bandeirante, se provado que ele o é de fato, a opção de adquirir terrenos extras ou terrenos que serão delimitados no futuro bairro.
[...] Contudo, as ações do governo Jânio Quadros revelaram-se uma total surpresa. O primeiro pronunciamento de Paulo de Tarso como prefeito a respeito do destino da cidade foi o de que ela passaria por um processo de "descompressão". Ele sustentava que, para salvar a cidade, cerca de dois terços de sua população teria de ser removidos; especificamente, aqueles que haviam vivido ou trabalhado ilegalmente nela antes da inauguração de Brasília. Com ajuda da polícia e do Distrito e do Exército, ele começou a transferir favelados para as diversas cidades-satélites ou mesmo para outros assentamentos ilegais, simplesmente para vê-los longe da Cidade Livre. Mais ainda, com a ameaça de uma remoção forçada, Tarso também começou a pressionar os empresários para que cumprissem suas obrigações contratuais, e se mudassem para o Plano Piloto. Assistindo a estes atos, a ACB interpretou a "descompressão" como um prelúdio para a erradicação total.
Para contrapor-se a estas medidas, a Associação Comercial alargou sua base de organização. Fundou uma associação de moradores que abrangia a cidade inteira, o Movimento Pró-Fixação e Urbanização do Núcleo Bandeirante (MPF). A ACB fez do movimento uma organização com muitas ramificações. Seu propósito era coordenar as ações de várias entidades que, juntos com a ACB, haviam organizado a luta pela sobrevivência da cidade. Seu próprio presidente era também um dos diretores do MPF e tinha em mãos uma considerável quantia de recursos. A estrutura burocrática do MPF contava com um presidente, três vice-presidentes, um secretário e um tesoureiro, além de uma série de departamentos, entre os quais o de publicidade, o de relações públicas e o de cultura. Com esses recursos organizacionais, o MPF iniciou uma dupla estratégia de mobilização. Seu primeiro objetivo era mobilizar a população local. O segundo era fazer um lobby no Congresso. Para alcançar o primeiro objetivo, desenvolveu uma intensa campanha de mídia, utilizando seu próprio jornal e, de forma mais eficiente, filmes difundindo os primeiros episódios do conflito. Neste esforço, o MPF teve absoluto sucesso. Conquistou apoio generalizado junto a todos os setores da sociedade pioneira, valendo-se de adesões interclasse e interstatus (por parte de empresários, trabalhadores, profissionais liberais e favelados) e de um apoio esmagador por parte das organizações dos pioneiros (as diversas associações comerciais, de moradores e de trabalhadores do Distrito Federal).
[...] João Goulart já se havia mostrado simpático à luta por direitos de residência dos candangos quando intercedeu em favor dos que moravam na Vila Amaury. Mais ainda, construíra sua carreira com base no movimento trabalhista oficial. Assim, junto com os sindicatos e os tribunais do Trabalho, sua base política repousava nos institutos de previdência, tão importantes na Brasília pioneira. Ademais, talvez tenha sentido a necessidade de encontrar uma base de apoio na nova capital. Por essas razões, Goulart mostrou-se aliado do lobby da Comissão Central do Congresso. Dada sua situação política precária, Goulart precisava garantir uma base efetiva no sistema parlamentarista recém-criado, que pudesse contar com um respaldo contínuo por parte da esquerda. Em tais circunstâncias, o deputado socialista Breno da Silveira pôde pressionar com sucesso em favor de sua causa pela legalização da Cidade Livre. Assim, o resultado do conflito deve-se não apenas às simpatias pessoais de Goulart, mas a uma eficaz estratégia de lobby pelos comitês estaduais do Movimento Pró-Fixação. Com apoio do presidente, estes puderam angariar suficientes adesões junto aos parlamentares para garantir a aprovação do projeto ratificando o status legal da Cidade Livre, in situ, como satélite de Brasília (lei 4020, 20/12/1961). Deste modo, teve-se o primeiro e até agora único caso de uma cidade-satélite criada por lei, e não por decisão executiva.
Fonte(s): Fonte(s): SANTOS, Milton. A cidade nos países subdesenvolvidos, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1965.
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