1989
Estados Unidos
PublicaçãoIdiomas disponíveis
Português
Colaborador
Jiovana dos Santos Santana
Citado por: 1
A cidade modernista mostra a critica feita pelo antropológo estadunidense James Holston, em 1989, onde ele relata o processo de construção e tombamento de Brasília, analisando a capital do país desde a sua fundação em 1957 até os dias de hoje por meio de uma análise que atravessa diversos campos disciplinares.
HOLSTON, James. A Cidade Modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia/ James Holston; Tradução Marcelo Coelho.- São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
[...] “Enquanto deixava essas questões recíprocas se provocarem no desenrolar da pesquisa, Brasília acabou cristalizando para mim um paradigma da modernidade particularmente importante: a ideia de que governos nacionais podem mudar a sociedade e manobrar o social através do imaginário de um futuro alternativo. Brasília também colocou em foco o dilema inevitável desses projetos de modernidade, ou seja, que os paradoxos da prática da construção desse futuro subvertem suas premissas utópicas.” [...]
[...] Apesar de ser um estudo de caso, este livro tem o proposito mais amplo de sugerir algumas das dimensões etnográficas e teóricas de uma antropologia da sociedade moderna no contexto de uma das suas principais formas politicas, o Estado-nação. Abordo esse tema a partir de duas perspectivas. De um lado, examino as tentativas de autoridades politicas modernas de criar e legitimar novas formas para esfera publica, com novos sujeitos e subjetividades. Para tanto, privilegio os instrumentos e iniciativas – como arquitetura, planejamento urbano, administração burocrática, formas de propriedade, politicas de terra e códigos legais – por meio dos quais essas autoridades procuram forjar novas formas de associações coletivas e hábitos pessoais; por meio dos quais, em outras palavras, tentam impulsionar suas sociedades para um futuro moderno – pós-colonial democrático ou socialista, conforme o caso -, o que é sempre uma complexa orquestração de intenções. De outro lado, examino como os processos sociais intencionais e não internacionais assim gerados inevitavelmente transformam os planos originais. Investigo também como as mobilizações locais da sociedade de massas – seus movimentos sociais, reivindicações politicas, estética, consumismo e diferenças culturais – fortalecem, desencaminha, parodiam e pervertem essas agendas de construção nacional. [...]
A viagem rumo a Brasília, através do Planalto Central, é uma jornada de separação. Faz o viajante confrontar-se com a Brasília moderna e o Brasil de todos os dias; [...]
Brasília foi construída para ser mais do que o simples símbolo dessa nova era. Seu projeto e sua construção tinham a intenção de criar essa nova era transformando a sociedade brasileira. Este estudo analisa as duas premissas paralelas dessa inversão no desenvolvimento – uma inversão pela qual a forma e a organização urbanas são consideradas como instrumentos de mudança social. A primeira premissa é a de que o plano para uma nova cidade pode criar uma ordem social segundo a sua imagem; ou seja, uma ordem baseada nos valores que inspiram o projeto. A segunda premissa projeta a primeira como um plano de mudança no contexto do desenvolvimento nacional. Propõe que a nova cidade venha a ser um modelo de praticas social radicalmente diferente. Sustenta que, se esse modelo puder servir como exemplo de progresso para o restante da nação, seria então possível não apenas generalizar suas inovações, mas também impelir o país como um todo em direção ao futuro planejado que ele corporifica. [...]
[...] Contudo, se o modernismo e a antropologia compartilham determinadas intenções criticas, no sentido de abalar os valores da civilização ocidental, o que torna problemático o seu inter-relacionamento é o fato de que, em larga medida, ambos os tipos de subversão resultaram em fracasso – ou, pelo menos, revelarem-se promessas não cumpridas. No estudo de Brasília, fica demostrado que a arquitetura e o urbanismo modernista não apenas falharam, mas que fortaleceram, muitas vezes, aquilo que pretendiam desafiar [...].
[...] Outro problema que o estudo de Brasília leva a confrontar, central tanto para o modernismo quanto para a antropologia, é o da história. Na arquitetura e no urbanismo, o modernismo começa por se distanciar das normas e das formas da vida urbana burguesa, a qual ele tenta subverter propondo ao mesmo tempo um futuro radicalmente diferente e um meio para se chegar até ele. [...] Essa teologia tem várias consequências importantes. Em primeiro lugar, ela gera um dos fundamentos da arquitetura e do urbanismo modernista: a total descontextualização, na qual se toma um futuro imaginado como a base critica pela qual avaliar o presente. Como carece, assim, de uma noção de contexto histórico, a visão modernista da historia é paradoxalmente desistoricizante.
[...] Para entender as intenções presente no projeto de construir Brasília, é necessário, primeiramente, visualizar a cidade como uma acrópole em meio a uma enorme extensão vazia. O Distrito Federal é uma área de 5771 km² demarcada aproximadamente do centro do Planalto Central. Em seu redor a cerca de dois milhões de km² de cerrado, estendendo-se sem variação significante entre mil e 1300m acima do nível do mar. Esse vasto platô representa 23% da área do país e em 1980 abrigava apenas 6% de sua população, concentrada, sobretudo em cidades e postos agrícolas avançados das zonas pioneiras. O resto da população esparsamente distribuído sobrevive da atividade pastoril ou da agricultura de subsistência. Na época em que Brasília foi construída, a densidade populacional media da região era inferior a uma pessoa por km². Hoje, é de apenas quatro pessoas (IBGE, 1981 b). Quando se viaja por essa planura desolada, qualquer interrupção da paisagem – uma palmeira retorcida ou uma cadeia de nuvens volumosas torna-se uma bem-vinda presença de vida. É a essa tradição de escultura no deserto que pertence o oásis de aço e vidro de Brasília erguido a quase mil quilômetros de distancia da costa brasileira, a qual, na metáfora de frei Vicente do Salvador (1931: 19), a civilização brasileira ficou, por mais de quatro séculos, “arranhando como caranguejo”.
[...] A mitologia do novo mundo complementa a fundação de Brasília como um instrumento de desenvolvimento politico e econômico. [...] Desde seus primórdios, a “ideia de Brasília” (como é chamada) teve a característica peculiar de atrair, como a imagem de um novo Brasil e como estratégia de desenvolvimento, o interesse de perspectivas politicas radicalmente diferentes, e mesmo violentamente opostas entre si. Essa ideia por fim obteve forma legal na primeira Constituição Republicana de 1891.
[...] Todavia, em 1955 a ideia de Brasília encontrou pleno eco na campanha presidencial de Juscelino Kubitschek. Ele iniciou sua candidatura com o compromisso de construir a nova capital. [...] Em primeiro lugar, ele argumentava que a construção da capital daria origem tanto à integração nacional (“integração pela interiorização” era um de seus slogans) como ao desenvolvimento regional, levando o mercado nacional às regiões de economia de subsistência. Em segundo lugar, ele sustentava que Brasília iria produzir tanto um novo espaço nacional como uma nova época para o país, incorporando o interior à economia e sendo ao mesmo tempo o marco decisivo na trajetória temporal do país rumo à sua emergência como uma grande nação.
[...] No plano de Kubitschek, essas inovações deveriam criar uma inversão no desenvolvimento: não apenas elevariam o Centro-Oeste ao nível de desenvolvimento do sudeste (isto é, Rio de Janeiro e de São Paulo), mas, o que seria mais importante, conduziriam o resto do país a empenhar-se nas inovações introduzidas por Brasília. Assim, esta se tornaria um “polo de desenvolvimento” nacional, uma “pedra jogada para criar ondas de progresso”, como retórica desenvolvimentista a definia. [...]
[...] Brasília é tomada, neste livro, como um estudo de caso da cidade modernista, tal como proposta pelos manifestos dos Congrès Internationaux d’ Architecture Moderne (CIAM). Corporifica, em sua forma e organização, a premissa de transformação social dos CIAM, ou seja, a de que a arquitetura e o urbanismo modernos são os meios para a criação de novas formas de associação coletiva, de hábitos pessoais e de vida cotidiana. [...]
[...] Brasília é uma cidade dos CIAM. Na verdade, é o exemplo mais completo já construído das doutrinas arquitetônicas e urbanísticas apresentadas pelos manifestos dos CIAM. De 1928 até meados da década de 1960, os CIAM constituíram o mais importante fórum internacional de debates sobre arquitetura moderna. [...] O Brasil estava representado nesses congressos desde 1930, e Lúcio Costa e Oscar Niemeyer puseram em prática os princípios dos CIAM com notória clareza.
[...] A Carta de Atenas, os objetivos do planejamento urbanos são definidos a partir de quatro funções: “As chaves para o planejamento urbano estão nas quatro funções: moradia, trabalho, lazer (nas horas livres), circulação” (Le Corbusier 1957 [1941]: art. 77). A última função, “circulação”, estabelece “uma comunicação proveitosa entre as outras três” (ibid., art. 81). Em um encontro posterior, o CIAM aumentou o número dessas funções, incluindo um “centro público” de atividades administrativas e cívicas. Os planejadores se referem à organização dessas funções em tipologias de atividades social e de forma de construção pelo nome de “zoneamento”. [...]
[...] Considerando-se agora o plano de Brasília é uma ilustração perfeita de como o zoneamento dessas funções pode gerar uma cidade. Um cruzamento de vias expressas determina a organização e a forma da cidade exatamente como Le Corbusier (1971ª [1924]: 164), o mentor dos CIAM, preconizava em uma publicação anterior: “Correndo de Norte a Sul, e de Leste a Oeste, formando os dois grandes eixos da cidade, haverá grandes artérias para o trafego de alta velocidade em uma única direção”. Superquadras residenciais são colocadas ao longo de um dos eixos; áreas de trabalho ao longo do outro. O centro público se localiza num lado do cruzamento entre os dois eixos. A área de recreação toma a forma de um lago e um cinturão verde rodeia a cidade. Et voilà – planejamento urbano total.
Compara-se, agora, a vista de Brasília com a das duas cidades ideias de Le Corbusier, uma Cidade Contemporânea para Três Milhões de Habitantes 1922 e A Cidade Radiosa de 1930. Estes dois projetos tornaram-se protótipos pra os modelos dos CIAM definindo na Carta de Atenas. Notem-se as similaridades explicitas entre ambas e Brasília: o cruzamento de vias expressas; as unidades de moradia com aparência e altura uniformes, agrupadas em superquadras residenciais com jardins e dependências coletivas; os prédios administrativos, financeiros e comerciais entornam do cruzamento central; a zona de recreação rodeando a cidade. O “pedigree” de Brasília é evidente. [...]
[...] Além das evidencias formais que inscrevem Brasília no modelo dos CIAM, a uma evidencia pedagógica: tanto Lúcio Costa como Niemeyer são discípulos de Le Corbusier. A influencia de Le Corbusier (e consequentemente dos CIAM) no desenvolvimento da arquitetura moderna brasileira foi decisiva (ver Bruand 1981: 82-93). Entre 1930 e 1945, Lúcio Costa e seus alunos analisaram sistematicamente a obra de Ler Corbusier e tornaram-na como o fundamento da arquitetura moderna no Brasil. Lúcio Costa (1962: 202) chamou-a de “o livro sagrado da arquitetura”. [...] Sua segunda visita galvanizou os arquitetos brasileiros a produzir um dos mais celebrados trabalhos de arquitetura contemporânea do mundo: o Ministério da Educação e Cultura no Rio construiu entre 1936 e 1943.
Nesse projeto Le Corbusier trabalhou diretamente com uma equipe de arquitetos brasileiros, chefiada por Lúcio Costa e incluindo alunos deste, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Jorge Moreira, Carlos Leão e Ernani Vasconcellos, que se tornariam mais trade arquitetos de destaque.
[...] As múltiplas descontextualizções dos manifestos dos CIAM tem diversas consequência para nossa analise alertam-nos para uma abordagem do planejamento urbano que irá reaparecer no caso de Brasília, tanto no seu plano piloto, quanto no poder de atração que exercia sobre grupos que, em outros aspectos, eram discordantes: Brasília foi planejada por um liberal de centro-esquerda seus prédios foram desenhados por um comunista, sua construção foi feita por um regime desenvolvimentista, e a cidade consolidou-se sob uma ditadura burocrático-autoritária, cada qual reivindicando uma afinidade eletiva com a cidade. [...]
[...] A vinculação entre um projeto urbanístico e um programa de mudança social é traço básico do planejamento em grande escala na arquitetura moderna. Em geral, essa relação se faz de duas maneiras. Em primeiro lugar, a arquitetura do plano conscientemente corporifica formas novas e desejadas de vida social. Os protótipos soviéticos para a organização residencial, por exemplo, baseiam-se em um conceito de vida domestica coletiva, mais do que em um conceito de moradias privadas famílias nucleares. Nesses esquemas, o papel da unidade de moradia privada é drasticamente reduzido, à medida que atividade como cozinhar e cuidar de crianças são atendidas por serviços públicos planificados e deslocadas para dependências coletivas. Por ser planejada para que um tipo diferente de organização social, essa unidade residencial modernista é radicalmente diferente em seu desenho arquitetônico de uma unidade de apartamentos privados para famílias nucleares. Em segundo lugar, a relação entre arquitetura e sociedade é concebida de forma instrumental. Os modernistas propõem que as pessoas que venham a ocupar suas obras sejam forçadas a adotar as novas formas de associação e os novos hábitos pessoais que a arquitetura estar a representar. Desse modo, a arquitetura é considerada como instrumento não apenas para mudança social, mas também para o advento de um bom governo e de uma ordem racional, assim como para renovação da vida por intermédio da arte.
Nestes aspectos, o plano piloto de Brasília representa um paradoxo enquanto plano para uma cidade modernista. Seu programa de mudança e administração da sociedade constituem um projeto oculto: enquanto o plano sugere alguns de seus aspectos, suas asserções básicas permanecem tácitas. Mais ainda, o plano não explica por que a nova capital federal deveria ter uma arquitetura radicalmente diferente daquela existente em outras cidades brasileiras. Tampouco esboça as intenções ou antecipa os efeitos contidos no ato de construir tal cidade no Brasil. O plano carece, ademais, de uma descrição explicita da estrutura social que se pretendia instituir em Brasília. Não é insensato supor que um plano abrangente para uma nova cidade teria de incluir ao menos alguma discussão sobre sua organização social, sobretudo se esta é o produto a ser obtido pela mudança social planejada. Contudo no plano, a poucas indicações sobre como Brasília deverias ser ocupada ou sobre que formas de organização social corresponderiam às profundamente diferentes formas de organização urbana apresentadas no projeto. [...]
[...] Costa (1957: art. 23) afirma que o plano consiste em três elementos estruturais básicos: o cruzamento de dois eixos, dois terraplenos e uma plataforma. O cruzamento axial define a área da cidade contida na figura de um triângulo equilátero superposto ao cruzamento. O triângulo equilátero marca a área de terra urbanizada o Plano piloto. Este termo é usado para designar tanto o projeto de Lúcio Costa quanto a cidade própria dita, em oposição às cidades-satélites , originalmente não planejadas que a rodeiam. Os edifícios públicos do Plano Piloto são dispostos ao longo de um eixo, enquanto os prédios residenciais ocupam o outro. Esses dois vetores da organização urbana funcionam ao mesmo tempo como vias expressas, garantindo acesso a seus respectivos “setores” de atividade. Os dois terraplenos formam o Eixo Monumental dedicado aos edifícios governamentais. Um compõem a Praça dos Três Poderes. Num nível mais elevado, o segundo cria uma esplanada pra os edifícios dos ministérios. A plataforma é uma estrutura de vários níveis no ponto em que os eixos se cruzam. Ocupa a intersecção do Eixo Monumental e do Eixo Residencial em um nível, e contem os centros de lazer e de transporte em outros dois níveis adicionais. Assim, o esquema de Lúcio Costa utiliza os mesmos três componentes físicos para organizar a cidade espacialmente e para diferenciar suas funções sociais em setores separados de atividade. Por meio dessa homologia estrutural entre a organização arquitetônico-espacial e a organização social e funcional Costa afirma prover um “quadro completo” da ordem urbana. [...]
[...] Ademais, a cruz usada por Lúcio Costa representa iconicamente dois símbolos arquetípicos da função e do planejamento de uma cidade, amplamente se não universalmente, conhecidos por urbanistas e arquitetos. O primeiro é considerado uma das mais antigas representações pictóricas da idade de uma cidade: o hieróglifo egípcio da cruz dentro de um circulo, ele próprio um signo icônico representando “cidade”, nywt. O segundo é o diagrama do templum nos antigos augúrios romanos, um circulo dividido em quatro pelo cruzamento de dois eixos. Representa um espaço no céu ou na terra demarcado pelo áuspice com o objetivo de recolher augúrios. Assim, representa um lugar consagrado, como um santuário, ermida, capela ou templo.
Cibele Rizek, 1993:
“Em meio a uma viagem por Brasília e seus muitos significados, temporalidades e espacialidades, o autor nos conduz a uma outra grande viagem por diferentes campos de conhecimento, raramente combinados em uma só́ escritura. A antropologia, a arquitetura e o urbanismo e sua história, sua apreensão das formas urbanas e dos edifícios, não apenas estão entrelaçados, mas se fertilizam nos desdobramentos analíticos que permitem a compreensão de uma cidade como Brasília.”