1986
Brasil, Bahia
Fato RelevanteIdiomas disponíveis
Português
Colaborador
Rebecca Araújo
Citado por: 1
Ordep Serra, 2008:
Terreiro da Casa Branca: patrimônio do Brasil.
O Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, chamado em iorubá (língua ritual de seu culto) Ilê Axé Iyá Nassô Oká, é um dos mais antigos e respeitados santuários da religião dos Orixás. Deu origem a centenas de outros terreiros, por todo o País. Dele descendem, por exemplo, os famosos templos do Gantois e do Axé Opô Afonjá, cada um deles fonte de inúmeros outros. Por isso o poeta Francisco Alvim, evocando Edson Carneiro, chamou essa venerável matriz de "Mãe de Todas as Casas".
Implantado a princípio na Barroquinha, em pleno Centro Histórico de Salvador, o famoso Ilê Axé (santuário, em iorubá) que tomou o nome de sua fundadora, a princesa Iyá Nassô, foi o primeiro templo religioso não católico a ser tombado como patrimônio histórico do Brasil (Processo número 1.067-T-82, Inscrição número 93, Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, fls. 43, e Inscrição número 504, Livro Histórico, fls. 92. Data: 14. VIII. 1986). Este tombamento foi decidido em maio de 1984, em reunião do Conselho do IPHAN, e foi homologado em 27 de junho de 1986 pelo então Ministro da Cultura, Celso Monteiro Furtado, nos termos da Lei de número 6292, de 15 de dezembro de 1975, e para os efeitos do Decreto-Lei número 25, de 30 de novembro de 1937.
Mas não é só isso: o Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho foi também reconhecido patrimônio cultural da Cidade do Salvador pela PMS, que primeiro o tombou e depois o tornou Área de Preservação Cultural e Paisagística deste município (Decreto Municipal 6.634 de 04.08.82, publicado em 08/08/82; Lei Municipal número 3.591, de 16/12/85). O terreno que encerra os seus principais templos foi desapropriado pela PMS para doação à associação civil que representa sua comunidade religiosa (Decreto Municipal número 7.321 de 05 de junho de 1985, publicado no Diário Oficial do Estado da Bahia em 08 e 09/11/85, retificado pelo Decreto Municipal de número 7.402, de 16/10/85, também publicado pelo Diário Oficial deste Estado). Posteriormente, o Governo do Estado desapropriou também, para o mesmo efeito (Decreto número 292 de 8 de setembro de 1987), um posto de gasolina que ocupava indevidamente a chamada Praça de Oxum, praça que integra o conjunto monumental deste famoso Terreiro. Tudo isso está bem documentado, é de conhecimento público e matéria de lei que não pode ser ignorada. Teve ampla divulgação na imprensa local e nacional. Tanto a União, através do IPHAN e da Fundação Palmares, como o governo municipal de Salvador investiram na restauração dos monumentos deste Ilê Axé, que agora a Prefeitura soteropolitana ameaça leiloar.
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O prestígio do templo da Casa Branca do Engenho Velho não se circunscreve a Salvador nem ao mundo do Candomblé. Este Terreiro já foi visitado por um Presidente da República (Juscelino Kubitschek), por um Prêmio Nobel (Wole Soynka), por ministros e secretários de Estado, por religiosos de diferentes credos e de diversas partes do mundo: já foram recebidos em seu sagrado recinto um emissário do Vaticano, uma delegação de pastores evangélicos da Noruega, reis-sacerdotes da Nigéria, xamãs indígenas como os xinguanos Raoni e Tacumã e muitos outros visitantes ilustres. Da Comissão de Defesa da Casa Branca participaram, entre outros, o Abade Dom Timóteo Amoroso Anastácio e os comunistas Haroldo Lima e Fernando Santana. A restauração da Praça de Oxum foi feita com base em projeto de Oscar Niemeyer, que o presenteou à comunidade do templo de Iyá Nassô. Três Governadores Baianos (Waldir Pires, Antônio Carlos Magalhães e Jaques Wagner) e vários prefeitos de Salvador já foram recebidos no célebre Terreiro e lhe fizeram homenagem. Nenhum desses visitantes ilustres jamais acreditaria que se pudesse pôr em dúvida a condição de templo religioso da Casa Branca do Engenho Velho.
Gilberto Velho, 2006:
Patrimônio, Negociação e Conflito.
Quando eu era membro do Conselho do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, tive a oportunidade e o privilégio de ser o relator, em 1984, do tombamento do terreiro de candomblé Casa Branca, em Salvador, Bahia. Era a primeira vez que a tradição afro-brasileira obtinha o reconhecimento oficial do Estado Nacional. Creio que rememorar alguns episódios ligados a essa iniciativa pode ajudar a refletir sobre a dinâmica e as transformações do patrimônio cultural.
Na época, o secretário de cultura do MEC era o Dr. Marcos Vinicios Vilaça, que presidia também o conselho da SPHAN e que desempenhou um papel fundamental para o sucesso do tombamento. O Conselho encontrava-se bastante dividido. Vários de seus membros consideravam desproposital e equivocado tombar um pedaço de terra desprovido de construções que justificassem, por sua monumentalidade ou valor artístico, tal iniciativa. Cabe lembrar que, até aquele período, o estatuto do tombamento vinha sendo aplicado, basicamente, a edificações religiosas, militares e civis da tradição luso-brasileira. As primeiras principais medidas de legitimação e proteção ao patrimônio foram tomadas, sobretudo, em relação a prédios coloniais e, em menor proporção, aos do período do Império e da Primeira República.
O terreiro de Casa Branca apresentava uma tradição de mais de 150 anos e, com certeza, desempenhava um importante papel na simbologia e no imaginário dos grupos ligados ao mundo do candomblé e aos cultos afro-brasileiros em geral. Do ponto de vista dessas pessoas o que importava era a sacralidade do terreno, o seu "axé". Em termos de cultura material, encontrava-se um barco, importante nos rituais, um modesto casario, além da presença de arvoredo e pedras associados ao culto dos orixás. Não era nada que pudesse se assemelhar à Igreja de São Francisco em Ouro Preto, aos profetas de Aleijadinho em Congonhas, em Minas Gerais, ao Mosteiro de São Bento, ao Paço Imperial da Quinta da Boa Vista ou à Fortaleza de Santa Cruz, no Rio de Janeiro. Tratava-se, sem dúvida, de uma situação inédita e desafiante.
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É inegável que para a vitória do tombamento foi fundamental a atuação de um verdadeiro movimento social com base em Salvador, reunindo artistas, intelectuais, jornalistas, políticos e lideranças religiosas que se empenharam a fundo na campanha pelo reconhecimento do patrimônio afro-baiano. Havia um verdadeiro choque de opiniões que não se limitava internamente ao Conselho da SPHAN. Importantes veículos da imprensa da Bahia manifestaram-se contra o tombamento que foi acusado, com maior ou menor sutileza, de demagógico. É importante rememorar esses fatos, pois a vitória foi muito difícil e encontrou fortíssima resistência. Foi necessário um esforço muito grande de um grupo de conselheiros, do próprio secretário de cultura do MEC e de setores da sociedade civil para que afinal fosse obtido sucesso.
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O caso do tombamento de Casa Branca poderia ser analisado como um drama social nos termos de Victor Turner (1974). Havia um grupo de atores bem definido com opiniões e mesmo interesses não só diferenciados mas antagônicos em torno de uma temática que se revelava emblemática para a própria discussão da identidade nacional. Independentemente de aspectos técnicos e legais, o que estava em jogo era, de fato, a simbologia associada ao Estado em suas relações com a sociedade civil. Tratava-se de decidir o que poderia ser valorizado e consagrado através da política de tombamento. Reconhecendo a válida preocupação de conselheiros com a justa implementação da figura do tombamento, hoje é impossível negar que, com maior ou menor consciência, estava em discussão a própria identidade da nação brasileira. A rápida passagem do Cardeal Primaz na histórica reunião não disfarçava que os setores mais conservadores do catolicismo baiano e, mesmo nacional, viam com maus olhos a valorização dos cultos afro-brasileiros.
Quando conselheiros argumentavam que não se podia "tombar uma religião", certamente entendiam que o tombamento de centenas de igrejas e monumentos católicos teria se dado apenas por razões artístico-arquitetônicas, o que não nos parecia correto. Assim, o tombamento de Casa Branca significava a afirmação de uma visão da sociedade brasileira como multiétnica, constituída e caracterizada pelo pluralismo sociocultural. Não há dúvida de que tal medida de reconhecimento do Estado representava também uma reparação às perseguições e à intolerância manifestadas durante séculos pelas elites e pelas autoridades brasileiras contra as crenças e os rituais afro-brasileiros.
VELHO, G. Patrimônio, negociação e conflito, Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, 2006.
Casa Branca do Engenho Velho:
No período da escravidão no Brasil, os negros formavam suas comunidades nos engenhos de cana. Na Bahia, princesas, na condição de escravas, vindas de Oyó e Keto, fundaram um centro num engenho de cana. Depois se agruparam num local denominado Barroquinha, onde fundaram uma comunidade de Nagô Ilè Asé Airá Intilè também conhecida como Candomblé da Barroquinha, que segundo historiadores, remonta mais ou menos 300 anos de existência, dentro do perímetro urbano de Salvador.
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O terreno fica situado numa encosta que se estende até uma cota de 30.00m com declividade de 30%, no lado direito da atual Avenida Vasco da Gama, no sentido de progressão para o Rio Vermelho, entre as Ladeiras Manoel do Bonfim e do Bogun, na Unidade Espacial C-5 em Salvador - Bahia. Ocupa uma área de 6.800m². Em redor do Barracão existem várias casas de Orixás.
No iníco, as atividades do Ilé Axé sofreram perseguições da Sociedade e por parte da Polícia. Já no período da República, o candomblé fora proibido de exercer as suas atividades e os Terreiros ficaram subjugados à Delegacia de Jogos, Entorpecentes e Lenocínio. Hoje, porém a situação é diferente. Existe na Prefeitura de Salvador, o Projeto Mamnba da Pro-Memória, sob a direção do Antropólogo Ordep José Trindade Serra, cujo objetivo é proceder ao Mapeamento de Sítios e Monumentos Religiosos Negros na Bahia.
Em 14 de junho de 1986, o Ministério da Cultura, a Prefeitura Municipal de Salvador e o Ministério das Relações Exteriores, em conjunto lançaram oito postais sobre a Ilé Axé Iya Nassô Oká e a revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional publicou - A Coroa de Xangô no Terreiro da Casa Branca - em separata do número 21/1986. Chegou então a hora da proteção a todos os Terreiros de Candomblé do Estado. Língua yorubá nos Currículos de 1º e 2º graus.
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O Ilé Axé Iya Nassô é o 1º Templo de Culto Religioso Negro no Brasil - Casa Branca do Engenho Velho. É o primeiro Monumento Negro considerado Patrimônio Histórico do Brasil desde o dia 31 de maio de 1984 (Tombamento do Terreiro do Engenho Velho).
Antes disso, em 1982, o Terreiro já havia sido tombado como Patrimônio da Cidade do Salvador 1ª Capital do Brasil.
Em 1985 o Terreiro do Engenho Velho foi considerado Axé Especial de preservação Cultural do Município de Salvador. A Sociedade São Jorge do Engenho Velho, representante legal da Comunidade do Ilé Axé Iya Nassô Oká foi considerada de utilidade pública Municipal e Estadual. É Membro do Conselho Geral do Memorial Zumbi.
Atualmente está feito o Plano de preservação do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho e prepara-se o Projeto de Recuperação da área em convênio com o Ministério da Cultura e a Prefeitura Municipal do Salvador. O Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, mais antigo do Brasil, deu origem a inúmeros Templos afro-brasileiros.
Saravá! Candomblé é patrimônio nacional.
Em 1986 o Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) reuniu-se em Salvador (Bahia), para deliberar sobre o tombamento do terreiro de candomblé da Casa Branca, localizado na cidade. Era a primeira vez que a tradição afro-brasileira obtinha o reconhecimento oficial do Estado. O tombamento foi efetivado, quando o terreiro foi inscrito no Livro do Tombo.
O reconhecimento oficial da Casa Branca representou um marco na afirmação da cultura negra no país. Na época, o terreiro da Casa Branca apresentava uma tradição de mais de 150 anos e desempenhava um importante papel na simbologia dos grupos ligados ao candomblé e a cultos afro-brasileiros.
Em termos de cultura material, Gilberto Velho seu texto descreve o local: “Encontrava-se um barco, importante nos rituais, um modesto casario, além da presença de arvoredo e pedras associados ao culto dos orixás. Não era nada que pudesse se assemelhar à Igreja de São Francisco, em Ouro Preto, ou à Fortaleza de Santa Cruz, no Rio de Janeiro. Foi muito difícil convencer o Conselho sobre a importância do tombamento de um terreiro de candomblé. Alem disso, havia uma mobilização da sociedade, com pessoas contra e a favor da iniciativa”.
Muitos dos Conselheiros do Iphan, que participaram do processo em 1984, afirmavam que não se podia “tombar uma religião”, entendiam que o reconhecimento de centenas de igrejas e monumentos católicos teria se dado apenas por razão artístico- -arquitetônico. Até aquele momento, não havia uma ferramenta legal para a proteção do patrimônio imaterial – mecanismo criado apenas em 2000, com o decreto número 3.551, que institui o registro de bens culturais de natureza imaterial. Assim o tombamento era a única forma de proteção – garantida por decreto de 1937 - que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico.
Para Ana Gita de Oliveira, coordenadora geral de identificação e registro do Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan, a questão do tombamento não garante a proteção ao culto e restringe-se ao espaço físico. Ela explica que o imaterial não existe sem o suporte do material. “Essa questão implica procedimentos diferentes, em instrumentos legais e contextos históricos diferenciados. A proteção começa com o tombamento dos terreiros”, afirma.
A evolução do conceito de cultura está marcada também na Constituição Federal de 1988, que define o patrimônio cultural da seguinte forma: “Bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Ainda assim, não há uma política federal de preservação sistemática para o reconhecimento do patrimônio material associada ao imaterial.
Ana Gita conta que a transformação do patrimônio cultural nacional está expressa na salvaguarda. Trata-se de um dos mecanismos de registro do Iphan que garante ações de fomento para preservar aquela tradição, modo de fazer ou celebração, por exemplo. “Assim, o Estado cumpre sua missão de preservar a cultura nacional”, explica.
Além do tombamento dos terreiros, o Iphan já registrou como patrimônios culturais do Brasil outros aspectos da cultura afro-brasileira, como o samba de roda, o jongo, o ofício das baianas do acarajé, as matrizes do samba no Rio de Janeiro, o tambor de crioulo e o ofício dos mestres e da roda de capoeira. No entanto ainda é preciso reconhecer muito da influência africana na cultura nacional. Embora não haja um número exato, estima- -se que o país tenha mais de dez mil casas de culto de religiões afrodescendentes.