1960
Brasil, Distrito Federal
Fato RelevanteIdiomas disponíveis
Português
Colaborador
Karine Souza
Em Defesa de Brasília - Lina Bo Bardi
O plano de Lucio Costa tem a forma de um avião somente para um observador leviano. Brasília é uma cidade lunar somente pra quem tem da Lua uma ideia abstrata e idealizada. A Lua é uma terra como qualquer outra, se lunar Brasília for. E Kafka é um homem. A vida é kafka e tudo aquilo que o homem faz é antikafka; vencer kafka é um esforço infinito. Quanto à "lei de tipo fascista", não é Brasília, mas sim querer destruir o que Brasília é e o que ela representa. Quiseram anular Brasília, mas não conseguiram; e não conseguirão. A fragilidade dialética de Brasília é apenas a fragilidade de hoje. A pesada alternativa de toda a cultura atual: uma cultura pobre - milhões de homens desesperados, prontos para o ataque -, uma herança totalmente desmistificada - um mundo totalmente nu, seco, feito de milhões de homens, sem arrebatamentos, sem saídas. O problema de todos, hoje, é o de construir, com esse pobre material, uma cultura. A toga acadêmica, o esnobe, a posição "superior" não servem mais. É pobre, é lunar, é desesperadamente miserável, mas é a realidade de um país, e não se pode julgaar Brasília, que representa um impulso de libertação de um grande país, segundo um esquema preestabelecido e acadêmico culturalmente formalista. É feio, é errado em "um sentido" - mas qual é o outro sentido? Por que o juízo formalista prevalece sobre a avaliação justa, histórica e real, do esforço de uma humanidade que procura o seu caminho no mundo desencantado da realidade de hoje? Por que o juízo formalista prevalece sobre a "solidariedade" política e moral? São necessários para expressá-lo um parâmetro atual, uma renúncia atual. Uma renúncia que não é indigência, mas disciplina. Em nome dos jovens que em silêncio veem aquilo que era uma razão de vida ser escarnecido e destruído, parece-me necessário rever este juízo, com a lealdade que reconheço nos senhores de cujo empenho me recordo.¹
¹ Este texto é a resposta de Lina Bo Bardi ao texto editorial de junho de 1964 da revista, repoduzido abaixo: "Oscar Niemeyer, de quem se anunciara a prisão, no último minuto conseguiu refugiar-se no exterior. Mas o sonho de Brasília partiu-se. Quando, no número 50, dedicamos um longo ensaio sobre essa cidade expectral, não podíamos naturalmente prever que ela viria a se transformar numa armadinha para os democratas. Contra a corrente, contra a retórica internacional que a magnificava, criticávamos o seu programa, o planejamento urbano, a arquitetura, definindo-a como uma cidade kafkiana, demonstrando como fatalmente sua construção resultaria em um acontecimento antidemocrático, porque sua existência propriamente dita implicava a aprovação de uma lei de tipo fascista, contra a imigração interna, e um regime policialesco como forma de se respeitá-la. Os acontecimentos foram além dos nossos temores.
Reunida a Câmara, os generais deram o golpe de Estado do Rio de Janeiro, depois fecharam o aeroporto. Visão alucinante, macabra: os deputados democratas presos um a um, a universidade cerdada, a biblioteca saqueada. Em poucas horas, a sinistra cidade dos funcionários públicos, artificilmente vestida pelos ornamentos estruturalísticos de Niemeyer, transformara-se em uma prisão cercada de todo lados pela floresta virgem. O projeto de Lucio Costa tem a forma de um avião, mas os democratas permaneceram em terra, sem esperança da fuga. Evento trágico, digno da reflexão dos urbanistas do mundo todo."
Os editores de L'Architettura - Cronache e Storia publicaram, então, no número segunte, esta carta de Lina, acompanhada do seguinte comentário:
"Como responder a um apelo tão apaixonado e generoso? Renunciando, deixando a palavra de Lina Bo. Entre ela e nós permanece a divergência sobre o valor de Brasília; e o diagnóstico publicado no número 50 desta revista encontrou uma confirmação muito eloquente nos fatos. A realidade de Brasília, nos conteúdos e nas formas que a representam, é retórica, kafkiana, substancialmente antidemocrática. Se os generais, no Rio de Janeiro, puderam cercá-la, isto se deve ao fato de a sua localização e sua planta permitirem o cerco; por outro lado, desde sua fundação, havia sido cercada pela polícia. Os jovens fazem muito mal em acreditar no mito de Brasília. Mas, se se trata de combater os generais, estamos, nós também, prontos para defendê-la". [N.O.]
Fonte(s):
L'ARCHITETTURA - CRONACHE E STORIA, n.109, Milão, Nov. 1964, pp. 436-37.
XAVIER, Alberto; KATINSKY, Julio Roberto (Orgs.). Brasília: Antologia Crítica. Face Norte, volume 14. São Paulo: Cosac Naify, 2012. pp. 135-36.
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