1986
Brasil, Bahia
Fato RelevanteIdiomas disponíveis
Português
Colaborador
Rebecca Araújo
Patrimônio, Negociação e Conflito.
Gilberto Velho, 2006:
Quando eu era membro do Conselho do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, tive a oportunidade e o privilégio de ser o relator, em 1984, do tombamento do terreiro de candomblé Casa Branca, em Salvador, Bahia. Era a primeira vez que a tradição afro-brasileira obtinha o reconhecimento oficial do Estado Nacional. Creio que rememorar alguns episódios ligados a essa iniciativa pode ajudar a refletir sobre a dinâmica e as transformações do patrimônio cultural.
Na época, o secretário de cultura do MEC era o Dr. Marcos Vinicios Vilaça, que presidia também o conselho da SPHAN e que desempenhou um papel fundamental para o sucesso do tombamento. O Conselho encontrava-se bastante dividido. Vários de seus membros consideravam desproposital e equivocado tombar um pedaço de terra desprovido de construções que justificassem, por sua monumentalidade ou valor artístico, tal iniciativa. Cabe lembrar que, até aquele período, o estatuto do tombamento vinha sendo aplicado, basicamente, a edificações religiosas, militares e civis da tradição luso-brasileira. As primeiras principais medidas de legitimação e proteção ao patrimônio foram tomadas, sobretudo, em relação a prédios coloniais e, em menor proporção, aos do período do Império e da Primeira República.
O terreiro de Casa Branca apresentava uma tradição de mais de 150 anos e, com certeza, desempenhava um importante papel na simbologia e no imaginário dos grupos ligados ao mundo do candomblé e aos cultos afro-brasileiros em geral. Do ponto de vista dessas pessoas o que importava era a sacralidade do terreno, o seu "axé". Em termos de cultura material, encontrava-se um barco, importante nos rituais, um modesto casario, além da presença de arvoredo e pedras associados ao culto dos orixás. Não era nada que pudesse se assemelhar à Igreja de São Francisco em Ouro Preto, aos profetas de Aleijadinho em Congonhas, em Minas Gerais, ao Mosteiro de São Bento, ao Paço Imperial da Quinta da Boa Vista ou à Fortaleza de Santa Cruz, no Rio de Janeiro. Tratava-se, sem dúvida, de uma situação inédita e desafiante.
Fui designado para ser o relator devido à minha condição de antropólogo, naquela época chefe do Departamento de Antropologia do Museu Nacional e que acabara de encerrar o meu mandato de presidente da Associação Brasileira de Antropologia. Valorizei a importância da contribuição das tradições afro-brasileiras para o Brasil como um todo. Chamei a atenção, particularmente, para a dimensão das crenças religiosas dessas tradições que, inclusive, extrapolavam as suas fronteiras formais. Defini cultura como um fenômeno abrangente que inclui todas as manifestações materiais e imateriais, expressas em crenças, valores, visões de mundo existentes em uma sociedade. Afirmei "que no momento em que existe uma preocupação em reconhecer a importância das manifestações culturais das camadas populares, há que se reconhecer o candomblé como um sistema religioso fundamental à constituição da identidade de significativas parcelas da sociedade brasileira"1.
Destaquei tratar-se de "um fato social, um terreiro em plena atividade, com seus fiéis, sacerdotes e ritual em pleno dinamismo". Ao recomendar o tombamento, considerei fundamental chamar a atenção para o fato de que "o acompanhamento e a supervisão da SPHAN deve, mantendo seus elevados padrões, incorporar uma postura adequadamente flexível diante desse fenômeno religioso" e, ainda, que "o tombamento deve ser uma garantia para a continuidade da expressão cultural que tem em Casa Branca um espaço sagrado". Afirmei que a sacralidade, no entanto, não era sinônimo de imutabilidade e que a SPHAN não abriria mão da seriedade de suas normas, mas deveria "procurar uma adequação para lidar com o fenômeno social em permanente processo de mudança".
Concluí recomendando "o tombamento de todo o sítio, uma área de aproximadamente 6.800m2, com as edificações, árvores e principais objetos sagrados, acompanhado de todas as medidas necessárias que efetivamente garantam a segurança desse patrimônio". Assinalei a visão de autores como Gilberto Freyre e Roger Bastide, que analisaram e valorizaram essa contribuição. Apontei também para o papel crucial na área da sociabilidade e do convívio dentro das camadas populares e entre estas e outros segmentos sociais. Frisei que, pelo menos, desde Nina Rodrigues ficara evidente o importante espaço social e simbólico ocupado pelos terreiros de Candomblé, entre os quais Casa Branca aparecia com particular destaque. A vida da cidade de Salvador não poderia ser compreendida sem essa percepção. Por outro lado, procurei demonstrar que dentro do quadro heterogêneo e complexo das grandes cidades contemporâneas, a atividade religiosa, com seus rituais e crenças, é essencial para a construção e a dinâmica das identidades. Os membros do Conselho da SPHAN que discordavam dessa posição tinham suas convicções honestas e arraigadas, produto de décadas de práticas voltadas para um outro tipo de política de patrimônio. Argumentou-se também que não era possível tombar uma religião. Quase todos os presentes na reunião de Salvador concordavam que era necessário proteger o terreiro, mas alguns insistiam em não se utilizar a figura do tombamento2. É interessante registrar que um número considerável de conselheiros não compareceu à reunião. Entre esses sete ausentes certamente estavam vários opositores à medida de tombamento.
Havia dúvidas também quanto à situação legal do terreno ocupado por Casa Branca. O próprio prefeito de Salvador, presente à reunião, enviou uma nota à presidência afirmando que a posse do terreno pelo terreiro de Casa Branca estava assegurada pela prefeitura. Houve intenso debate com prós e contras. Como já disse, alguns dos argumentos contrários tinham suas razões e explicações a partir do que vinha sendo feito até então. No entanto, não posso evitar mencionar que em alguns casos poderia haver um certo desprezo pelo que considerávamos importantes manifestações culturais da nação brasileira.
É inegável que para a vitória do tombamento foi fundamental a atuação de um verdadeiro movimento social com base em Salvador, reunindo artistas, intelectuais, jornalistas, políticos e lideranças religiosas que se empenharam a fundo na campanha pelo reconhecimento do patrimônio afro-baiano. Havia um verdadeiro choque de opiniões que não se limitava internamente ao Conselho da SPHAN. Importantes veículos da imprensa da Bahia manifestaram-se contra o tombamento que foi acusado, com maior ou menor sutileza, de demagógico. É importante rememorar esses fatos, pois a vitória foi muito difícil e encontrou fortíssima resistência. Foi necessário um esforço muito grande de um grupo de conselheiros, do próprio secretário de cultura do MEC e de setores da sociedade civil para que afinal fosse obtido sucesso.
A histórica sessão do Conselho realizou-se nos imponentes salões da Santa Casa da Misericórdia, em Salvador, com a presença de um público altamente mobilizado e emocionado. Na abertura da reunião estava presente o próprio Cardeal Primaz do Brasil, Dom Avelar Brandão. A votação final foi muito disputada, com três votos a favor do tombamento, um pelo adiamento, duas abstenções e um voto contra, expressando o grau de dificuldade encontrado para implementar a medida. O tombamento foi comemorado com grande alegria e júbilo pela maioria do público presente, mas não podia ocultar as fortes diferenças de opinião e pontos de vista.
O caso do tombamento de Casa Branca poderia ser analisado como um drama social nos termos de Victor Turner (1974). Havia um grupo de atores bem definido com opiniões e mesmo interesses não só diferenciados mas antagônicos em torno de uma temática que se revelava emblemática para a própria discussão da identidade nacional. Independentemente de aspectos técnicos e legais, o que estava em jogo era, de fato, a simbologia associada ao Estado em suas relações com a sociedade civil. Tratava-se de decidir o que poderia ser valorizado e consagrado através da política de tombamento. Reconhecendo a válida preocupação de conselheiros com a justa implementação da figura do tombamento, hoje é impossível negar que, com maior ou menor consciência, estava em discussão a própria identidade da nação brasileira. A rápida passagem do Cardeal Primaz na histórica reunião não disfarçava que os setores mais conservadores do catolicismo baiano e, mesmo nacional, viam com maus olhos a valorização dos cultos afro-brasileiros.
Quando conselheiros argumentavam que não se podia "tombar uma religião", certamente entendiam que o tombamento de centenas de igrejas e monumentos católicos teria se dado apenas por razões artístico-arquitetônicas, o que não nos parecia correto. Assim, o tombamento de Casa Branca significava a afirmação de uma visão da sociedade brasileira como multiétnica, constituída e caracterizada pelo pluralismo sociocultural. Não há dúvida de que tal medida de reconhecimento do Estado representava também uma reparação às perseguições e à intolerância manifestadas durante séculos pelas elites e pelas autoridades brasileiras contra as crenças e os rituais afro-brasileiros (ver Maggie 1993).
Fonte(s):
VELHO, G. Patrimônio, negociação e conflito, Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, 2006.
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