1976
Estados Unidos
PublicaçãoIdiomas disponíveis
Português
Marcadores
Favelas, Movimentos Sociais Urbanos, Verticalização, Desenvolvimentismo
Colaborador
Thiago Silva
Citado por: 1
Através de extensa pesquisa bibliográfica e realização de entrevistas formais e informais em três favelas do Grande Rio - Catacumba, Nova Brasília e Duque de Caxias - a pesquisadora americana sintetiza as distorções e preconceitos das teorias sociais ligadas às noções de cultura da pobreza e marginalidade, e denuncia os mecanismos de dominação de classe que perpetuam a situação de privação e impotência dos favelados.
O livro foi publicado no Brasil com o título O Mito da Marginalidade: Favelas e Política no Rio de Janeiro.
Janice Perlman, 1976:
"[O Mito da Marginalidade] pretendia inicialmente abordar em profundidade o impacto da experiência urbana sobre os migrantes e favelados do Rio de Janeiro. [...] Após viver nas favelas do Rio, todavia, e me familiarizar com as realidades da situação brasileira, resolvi que a questão fundamental não era a maneira como essas pessoas adotam estilos de vida da cidade ou se modernizam graças à exposição urbana, porém, como elas se integram nas estruturas sociais, econômicas e políticas nacionais. Constatei que o conjunto de estereótipos a que denomino "mitos da marginalidade" são tão generalizados e arraigados que constituem uma ideologia - de fato, um instrumento político - para justificar as políticas das classes dominantes, das quais dependem as próprias vidas dos migrantes e favelados. Decidi, então, examinar a validade das crenças vigentes sobre essa questão, e analisar os termos da integração dos migrantes nas favelas ou cortiços do Rio de Janeiro.
[...]
A crença geral é que, nos anos de rápida urbanização que se seguiram à guerra, a cidade foi invadida por hordas provenientes das zonas rurais. Imagina-se que esses migrantes chegam do interior solitários e sem raízes, despreparados e incapazes de se adaptar perfeitamente à vida urbana, e perpetuamente ansiosos por regressar aos seus vilarejos. Em atitude de defesa, isolam-se em grupos fechados de características rurais, em vez de tirar proveito do contexto mais vasto da cidade. Suas favelas "imundas e insalubres", imagina-se, exibem todos os sintomas da desorganização social - desde a desintegração da família, a anomia, a desconfiança mútua, até o crime, a violência e a promiscuidade. Os migrantes nascidos no interior são considerados prisioneiros de desajustados valores rurais ou de traços igualmente derrotistas da "cultura da pobreza". Qualquer dessas opções resulta em altos níveis de fatalismo e pessimismo, e em uma incapacidade total para adiar a satisfação dos desejos ou planejar para o futuro. Essa gente é acusada de parasita ou sanguessuga da infraestrutura urbana e seus limitados recursos. O que é ainda mais importante para muitos analistas, os favelados e migrantes representam ameaçadoras "massas agitadas e frustradas", prontas a cair como fáceis presas do apelo da retórica radical.
A essas crenças eu denomino os "mitos da marginalidade". As citadas características dos pobres das cidades derivam-se de inúmeros estudos populares, teorias acadêmicas e preconceitos locais. Este trabalho aborda a evolução de tais mitos da marginalidade, o quanto eles contém de verdadeiro, e quais as suas consequências.
[...]
O estudo do conceito de marginalidade é de particular relevância porque as ideologias e estereótipos que a eles se associam afetam as vidas de milhões de pobres moradores de favelas ou cidades. Este conceito virtualmente criou asas, e se popularizou como uma teoria coerente apesar - ou talvez, precisamente isso - de se basear num conjunto de hipóteses mal concatenadas e bastante ambíguas. A marginalidade também tem sido usada em muitos debates como uma cortina de fumaça atrás da qual continuam a ser conduzidas velhas batalhas ideológicas - tais como as que se batem a respeito da natureza do sistema social, o processo de modernização ou as implicações do capitalismo e do imperialismo.
[...]
Na América Latina, as conotações pejorativas dos pobres das cidades possuem profundas raízes históricas. A cidade, como ressaltaram Lisa Peattie, Alejandro Portes e outros, sempre foi uma fortaleza da cultura elevada, a cidadela das elites, com uma grande homogeneidade das classes. Desde a primeira invasão de imigrantes do interior, e o aparecimento das primeiras favelas no cenário urbano, a atitude da elite urbana foi tratar essas comunidades como uma praga. Tudo foi feito para impedir o nascimento das favelas, atrasar seu crescimento e apressar sua morte.
Ao mesmo tempo, contudo, o sistema produzia tanto os aglomerados subnormais de população como a concentração de desemprego nas cidades. A incapacidade da economia para absorver os marginais na força de trabalho reforçava a ameaça de colapso social e político. Esta contradição entre o temor crescente das "crescentes massas bárbaras" nas cidades e a consciência de sua inevitável existência é subjacente à ideologia da marginalidade e à sua manipulação política.
Paradoxalmente, a maneira característica de enfrentar o temor dessas massas é expressar o desejo de "integrá-las" no próprio sistema que produz a situação social e econômica denominada "marginal".
[...]
[O texto demostra] como os estereótipos vigentes quanto à marginalidade social, cultural, econômica e política são claramente desmentidos pela realidade. Existem fortes evidências a comprovar que os favelados não são marginais, mas de fato integrados na sociedade, ainda que num modo que vai contra seus próprios interesses. Certamente não se encontram separados do sistema, ou à sua margem, mas estão a ele estreitamente ligados de uma forma muitíssima assimétrica. Contribuem com seu árduo trabalho, suas elevadas esperanças, e sua lealdade, mas não tiram proveito dos bens e serviços do sistema. Eu sustento que os moradores da favela não são econômica nem politicamente marginais, mas são explorados e reprimidos; que não são social e culturalmente marginais, mas são estigmatizados e excluídos de um sistema social fechado. Não são passivamente marginais em termos das suas próprias atitudes e comportamento, ao contrário, estão sendo ativamente marginalizados pelo sistema e pela política oficial.
[...]
Ironicamente, a ideologia da marginalidade tem sido tão poderosa no Brasil que se tornou uma profecia que se cumpre por sua própria força. A remoção da favela, cruelmente, está criando a população marginalizada que se propunha a eliminar. Ainda que se considerasse que os favelados viviam à margem da corrente principal da classe média, eles se identificavam fortemente com a mesma. Depois da remoção, porém, os favelados encontram-se literalmente expulsos da cidade - rejeitados e punidos por serem pobres, e geograficamente isolados das inumeráveis oportunidades que a vida urbana tem para oferecer, e que os haviam atraído inicialmente.
[...]
Do ponto de vista do governo, todavia, as favelas sempre foram vistas não como solução mas como problema. Desde o aparecimento das primeiras favelas por volta de 1930, 1940, a política oficial tem sido uma indisfarçada repressão dos migrantes e a prevenção da melhoria ou expansão das favelas.
[...]
Ainda que sempre tenha havido oposição aos cortiços em toda a história do Brasil, somente após a tomada dos militares em 1964 é que o governo passou a dispor do poder, da centralização e dos recursos para uma erradicação total. A principal instituição através da qual o governo tem canalizado este poder é o Banco Nacional de Habitação [BNH] criado em 1964 para, segundo se propunha, dirigir, disciplinar e controlar o financiamento de um sistema habitacional destinado a promover a casa própria para as famílias brasileiras, especialmente entre os grupos de rendas inferiores. [...]No caso do Rio, criou-se em 1968 um órgão especial, a Coordenação da Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio, ou CHISAM, a fim de compensar a falta de coordenação que existia entre as COHAB's dos então Estados da Guanabara e Rio de Janeiro. [...] Seu objetivo era a remoção de 100 favelas por dia. Até o final de 1973, a CHISAM acabara com 62 favelas total ou parcialmente, e transferira 35 157 famílias (compreendendo 175 785 pessoas) para conjuntos habitacionais.
[...]
Em termos de justeza de definição, comprovei que as crenças comuns são totalmente equivocadas: os favelados e suburbanos não possuem as atitudes ou o comportamento supostamente associados aos grupos marginais. Do ponto de vista social, são bem organizados e coesos, e utilizam amplamente o meio e as instituições urbanas. Do ponto de vista cultural, são muito otimistas e aspiram a uma educação melhor para os seus filhos e a melhoria de suas casas. [...] Quanto ao ponto de vista econômico, consomem sua cota dos produtos de outrem (pagando às vezes mais caro pois precisam comprar onde conseguem crédito), e constroem não apenas a própria casa mas ainda grande parte da infraestrutura urbana e comunitária. [...] Politicamente, não são nem apáticos nem radicais, têm consciência e participam ativamente daqueles aspectos da política que lhes afetam a vida mais diretamente, tanto dentro como fora da favela. [...]
Mas não foi apenas nesse nível que a teoria da marginalidade tem sido errônea. Baseia-se ela numa série de hipóteses básicas sobre a natureza da sociedade que não são necessariamente verdadeiras. Em primeiro lugar, seu sistema analítico postula não apenas diversas características ecológicas, econômicas, sociais, culturais e políticas das populações marginais, como ainda aceita como suposição básica a covariação de cada uma dessas dimensões, desviando assim a atenção da independência existente entre essas esferas.
[...]
A segunda suposição enganosa é que a pobreza seja uma consequência de características individuais do pobre, mais do que uma condição da própria sociedade. Sem considerar as instituições sociais que proporcionam os parâmetros básicos da vida do pobre - como sejam, mercados de trabalho, divisão das classes sociais e o estado em si - é difícil ver além de uma perspectiva arbitrária segundo a qual se atribui ao pobre a culpa de sua pobreza.
[...]
O que é, talvez, mais importante: o paradigma da marginalidade baseia-se num modelo equilibrado ou integrado da sociedade. Não apenas os mitos são falsos, mas o modelo também não é válido. A teoria da marginalidade supõe que num sistema em funcionamento as interconexões entre os segmentos tendem a ser mutuamente satisfatórias e benéficas para todos. É possível, todavia, haver um sistema estável cujo equilíbrio beneficie a alguns precisamente graças à exploração explícita ou implícita de outros. Os grupos assim explorados não são marginais, mas integrados em larga medida no sistema, funcionando como uma parte vital do mesmo. Em resumo, integração nem sempre implica reciprocidade.
[...]
As desigualdades sociais antecederam de muito os problemas específicos que se relacionam com a hiperurbanização e os aglomerados subnormais. A sociologia começou a se tornar popular como disciplina quando a ordem social vigente e a estabilidade se sentiram profundamente ameaçadas por aquelas desigualdades, no começo do século XX. A teoria da marginalidade foi a maneira pela qual os cientistas sociais combinaram as antigas ideologias com as novas realidades sociais no período entre as duas guerras mundiais, e especialmente na América Latina após a Segunda Grande Guerra, quando o prenúncio de colapso das cidades parecia assumir proporções críticas. Os mitos da marginalidade são, em parte, a expressão ideológica da preocupação dos sociólogos com a integração das massas populares."
Gilberto Velho, 1976:
"Um dos principais méritos da Dra. Perlman parece-me ser, justamente, o fato de percorrer, com maior ou menor profundidade, grande parte da bibliografia mais significativa sobre o assunto favela e marginalidade. Por outro lado, preocupa-se em relacionar a problemática das favelas estudadas com situações que possam apresentar semelhança em outras sociedades, demonstrando uma saudável perspectiva comparativista. Sob este ponto de vista junta-se a outros cientistas sociais nas críticas ao conceito de cultura da pobreza. Embora não acrescente nada de teoricamente muito significativo ao que já foi dito, por exemplo, por Leacock e outros3, enriquece com exemplos cariocas concretos tais argumentos. Nesse sentido, seu trabalho pretende ser uma crítica e resposta ao que classifica como distorções e preconceitos das teorias ligadas às noções de cultura da pobreza e marginalidade. Basicamente o esforço da autora é de afirmar a situação de categoria oprimida da população favelada, apontando os mecanismos de dominação de classe que perpetuam sua situação de privação e impotência. O livro mantém sempre uma linha de crítica e denúncia de mecanismos materiais e ideológicos de manipulação e controle das camadas mais baixas da sociedade brasileira. Analisa, particularmente, o problema da remoção, sendo que uma das favelas que estudou, a da Catacumba, sofreu essa ação. Preocupa-se em mostrar como a remoção vai criar uma população realmente marginalizada e desenraizada, ao contrário da situação anterior nas favelas de origem. O que seria um mito manipulado por interesses de classe para estigmatizar os grupos favelados, passa a se aproximar de uma verdade quando da remoção para lugares onde as condições de vida seriam agudamente precárias. A remoção representaria o afastamento ou o dificultamento do acesso ao mercado de trabalho, aos benefícios da vida urbana em geral, inclusive bens simbólicos. Um dos pontos básicos do trabalho é procurar provar que os favelados eram ou são socialmente organizados, produtivos economicamente e que estariam longe de constituir núcleos e redutos de crime, indolência, apatia, etc. Embora a originalidade não seja o único critério para avaliar-se o mérito de um livro, cabe lembrar os trabalhos dos Leeds, de Machado da Silva que entre outros investigadores já há um certo tempo tinham realizado com competência e eficácia essa desmistificação em relação às favelas do Rio de Janeiro4. Repito que a autora faz referência, escrupulosamente, a quase todos esses trabalhos que precederam o seu esforço. No entanto, parece-me que existe uma diferença essencial na maneira como esses resultados foram obtidos. Por exemplo, a Dra. Perlman aplica questionários perguntando ao seu universo se acha que sua vida melhorou nos últimos cinco anos e como acha que será daqui a cinco anos, no futuro (p. 147); perguntando se "um homem pode ser verdadeiramente bom sem ter religião" (p. 143), e perguntando o que faria se fosse Presidente da República (p. 143); e pretende estar recolhendo dados sobre otimismo pessoal e geral, religiosidade e empatia respectivamente. É claro que há outras perguntas também, mas a grande diferença que a Dra. Perlman deposita na aplicação de seus questionários choca um pouco. Acrescente-se a isso uma reduzida preocupação etnográfica. A autora está voltada para a desmistificação das teorias sobre marginalidade e cultura da pobreza, porém pouco relevo dá ao material que certamente obteve, através da observação, no seu longo período de trabalho. Tendo desenvolvido sua pesquisa nas favelas cariocas entre setembro de 1968 e novembro de 1969 e graças a algumas indicações que dá de seu relacionamento com o universo, certamente, a Dra. Perlman tem material etnográfico mais rico a apresentar. Pouco ficamos sabendo sobre o cotidiano do favelado, sua rotina diária, com quem se encontra, com quem faz o que no seu network, concretamente como parentes e vizinhos se relacionam, com quem brigam e em torno de que, etc. A ausência de uma análise da vida religiosa constitui-se em séria lacuna, quando a própria autora dá indicações de sua importância na vida do universo estudado (p. 50 e p. 132)."
Alba Zaluar, 1985:
"A mesma direção integracionista, mas com outro sentido político, críticas à suposta marginalidade das populações faveladas nas grandes cidades brasileiras negam que estas se caracterizem pelo isolamento, desorganização interna, tradicionalismo, cultura pobre, parasitismo econômico e apatia política. Conclui que, ao contrário, os favelados são socialmente bem organizados e coesos, fazem amplo uso do ambiente urbano e das instituições deste, economicamente são trabalhadores árduos e ótimos consumidores, politicamente "tem as aspirações de uma burguesia, a perseverança dos pioneiros e os valores dos patriotas", não sendo nem radicais nem apáticos. Trata-se, portanto, de sublinhar a integração completa dos favelados em todos os níveis da sociedade.
Assim posta a questão, a intenção de desmanchar as fronteiras arbitrárias entre as classes prósperas e os pobres urbanos "marginais" acaba por criar, nessa tentativa de destruir o que Perlman chamou de "mito da marginalidade", uma ideia talvez falsa da identificação positiva dos pobres com a sociedade nacional na sua versão da classe dominante. E a ideia de que existe urna cultura brasileira una, indivisa e disseminada em todas as manifestações da vida social de todas as classes e categorias de pessoas na sociedade brasileira é, no mínimo, discutível. Ao se denunciar o processo de estigmatização das populações pobres, especialmente os favelados e habitantes de conjuntos da CEHAB, acaba-se por negar qualquer sinal de alteridade nas concepções e práticas culturais destes, por oposição aos seus outros. Ao apresentar um modelo uno e coerente de sua ideologia, destrói-se a diversidade e tensões internas que marcam qualquer sistema cultural de qualquer sociedade e de qualquer classe social, tornando-nos cegos para as divisões, conflitos e tensões a esta categoria especialmente heterogênea dos pobres urbanos. Em nome da urgência de passar-lhes um diagnóstico, decide-se se são radicais ou conservadores, tradicionais ou modernos, passivos ou contestadores, clientelistas ou classistas. Ao sublinhar sua dependência em relação aos que dominam a sociedade, maneira de afirmar sua integração a sociedade, afasta-se no mesmo ato a possibilidade de que possuam formas autônomas de organização e pensamento. Isso me parece vir acompanhado de etnocentrismo, que se intromete por debaixo do pano nas afirmações de que os pobres urbanos são organizados socialmente porque são capazes de construir organizações burocráticas do gênero conhecido pelas classes médias letradas e "integradas". Ou que são ativos politicamente quando participam do jogo parlamentar democrático, tal como definido pelas instituições políticas e pelos organismos partidários que buscam a direção da sociedade, desconhecendo suas formas próprias de protesto diante do sistema ou do Estado ou chamando-as de irracionais, cegas e espontaneístas. Agora é preciso inverter o ponto de vista e pesquisar qual a visão da sociedade e da política desde baixo.
Por terem recortado o seu objeto de forma a tratar o grupo escolhido e habitantes de favelas ou conjuntos habitacionais no seu meio social, denunciando o processo de estigmatização que sofreram e sofrem, esses estudos acabam por relegar ao segundo plano os mecanismos institucionais que permitem ou entravam o relacionamento entre os trabalhadores pobres e as demais classes sociais ou o Estado, modos estes divergentes conforme o parceiro em questão. Fica-nos o paradoxo final de Perlman quando conclui simultaneamente que os pobres urbanos são integrados em todos os níveis da sociedade brasileira, embora marginalizados e não marginais, excluídos e não apáticos, explorados e não parasitários. Como poderiam, de fato, pessoas expostas a tal tipo de discriminação e exploração permanecer completamente simpáticas, cegas e dóceis ao sistema que as exclui e explora?
Tanto a recusa de pensar a atual situação dos pobres urbanos excluídos, marginalizados e estigmatizados como um momento nas relações entre as classes, quanto o recurso as concepções gerais que se aplicam a um amplo espectro de sociedades onde é possível identificar traços paternalistas e personalistas (onde não os há?), impede a busca do que existe de específico no modo brasileiro de dizer as relações entre dominante e dominado, bem como do momento agora vivido no processo de transformação por que passaram e passam estas relações. Assim também o diagnóstico de sua posição no espectro político-ideológico baseado em pesquisa de opinião num dado momento não leva em conta nem os constrangimentos a sua fala no momento da entrevista, nem a. tensão entre as ideias divergentes que fazem parte da sua visão da política e que podem estar sustentadas na relação entre os seus líderes e eles mesmos "
Marcelo Lopes de Souza, 1997:
"Há duas décadas Janice Perlman publicou um livro que, hoje, é considerado uma das principais obras já escritas sobre a pobreza urbana na América Latina, em geral, e no Brasil, em particular: O Mito da Marginalidade [...]. Com suporte empírico em estudos de caso conduzidos na metrópole do Rio de Janeiro entre fins dos anos 60 e começo dos anos 70, Perlman fulminou tanto a ingênua crença, comum entre observadores de esquerda nos anos que precederam o golpe militar de 1964, de que os favelados, em razão de sua condição de explorados, seriam contestadores latentes do status quo, altamente receptivos à pregação revolucionária, quanto os estereótipos simplistas e estigmatizantes abrigados no campo conservador - ou seja, a visão dos favelados como "parasitas", "desajustados", "vagabundos" etc. Dotada de razoável senso crítico, mas sem ser uma intelectual marxista, Perlman demonstrou, com seu trabalho, que os favelados não eram, de forma alguma, "marginais", no sentido de estarem "à margem" do sistema. Muito pelo contrário, os favelados estariam integrados ao sistema - o que, obviamente, não significa negar a sua situação objetiva de segmento desprivilegiado e oprimido -, uma vez que: economicamente, a grande maioria dos moradores de favelas seria composta por trabalhadores explorados (e suas famílias), pilares da economia capitalista; politicamente, a população favelada estaria enredada nas malhas do clientelismo, muitas vezes contribuindo para a manutenção das estruturas políticas reacionárias das quais ela, em última análise e a longo prazo, era e é a principal vítima; culturalmente, os favelados partilhariam muitos dos valores dos não-favelados. Exploração e acomodação, e não marginalidade, seriam, por conseguinte, os termos adequados para caracterizar a situação das populações faveladas."
A despeito da grande ressonância encontrada no meio científico-intelectual pelo trabalho de Perlman e pelo padrão de crítica do qual seu livro acabou por tornar-se um símbolo, o "mito da marginalidade" não desapareceu simplesmente. Na verdade, a década de 80 acrescentou um ingrediente a mais ao "mito da marginalidade": o clichê segundo o qual os favelados são vistos como traficantes de drogas ou, pelo menos, como criaturas socialmente perigosas e moralmente deformadas, porque cúmplices dos traficantes. [...] Nesse novo contexto de estigmatização, que tem servido para, por assim dizer, atualizar o "mito da marginalidade", uma outra cientista social, Alba Zaluar, tampouco uma pesquisadora de corte marxista, vem insistindo, há muitos anos, sobre dois pontos: em primeiro lugar, sobre a necessidade de uma nítida distinção, no seio da população favelada, entre "trabalhadores" (implicitamente assumidos como a maioria da população) e "bandidos", distinção categorial que refletiria uma diferenciação da qual os próprios favelados seriam bastante ciosos, a despeito de uma certa complacência ou "solidariedade" dos "trabalhadores" para com os "bandidos", por conta do fato de também serem favelados estes últimos [...]; e em segundo lugar, sobre a situação da população "trabalhadora" como vítima do sistema e aterrorizada pelos "bandidos", ao mesmo tempo em que, em última análise, os próprios traficantes de favela, especialmente os integrantes dos escalões mais baixos, devem ser encarados como vítimas de uma engrenagem que os devora, não escapando à autora que os traficantes mais ricos não moram em favelas nem arriscam a vida."
Janice Perlman, 2004:
Cantareira - Em seu livro você diz que uma das maiores consequências dos mitos da marginalidade é a cultura da pobreza que responsabiliza o pobre, e não o sistema que gera e mantém sua pobreza, pela sua situação. Na sua opinião, este elemento está presente hoje em programas dirigidos a comunidades de baixa renda, comumente apelando ao empreendedorismo? A solução de combate à pobreza passa pela simples inserção do pobre no mercado?
Depende de quem está organizando o programa. Na prática, emprego e melhores condições de vida são itens que todos desejam. Os programas se tornam paternalistas quando eles encaram os favelados como pobres coitados incapazes, mesmo fornecendo esses itens. Porém, alguns programas ligados a ONG's e ao governo não são paternalistas. Por exemplo, temos o programa banco de direitos, do Viva Rio, onde alunos de faculdades de direito e professores ajudam as pessoas a conseguirem identidade, certidões de casamento e documentação necessária para se conseguir emprego. Há também o programa de Rogério da Costa relacionado a informática e cidadania, onde se realiza a capacitação de jovens no setor da informática, em gestões e desenvolvimento de sites, o que capacita o jovem para entrar no mercado com melhor salário, devido a aproximação com essa tecnologia. Há também a implementação do Favela Bairro, que não possui características paternalistas, dependendo do lugar em que foi implementado, sendo que essa diferença se dá devido ao fato de diferentes equipes terem trabalhado em diferentes favelas onde o programa foi implementado. Em minha pesquisa mais recente, vejo que os moradores de favela estão mais interessados em melhores salários e condições de trabalho. Muitos deles conseguem melhorias em termos de emprego, mas não conseguem condições de sair das favelas, e acabam sendo estigmatizados por isso, chegando a ponto de não conseguirem outro emprego, comprar móveis e não os terem entregados no local. Inserção no mercado não é a única forma de se conseguir renda, há também os estímulos à microempresa, que prestam serviços à comunidade, que utiliza-se do mercado informal, mas cria seu próprio público, mercado. Alguns desses programas acabam abrindo espaço para membros da comunidade para que esses prestem serviços a mesma. Como exemplo temos um programa, coordenado pelo ENDA, que propiciou a mulheres de uma comunidade a organizarem um bazar, sendo que essas mulheres foram a casas de pessoas mais ricas, muitas delas as empregavam em serviços domésticos, e conseguiram arrecadar uma série de roupas, móveis, calçados velhos, que foram restaurados por essas mulheres da comunidade e vendidos no bazar. O dinheiro arrecadado foi utilizado tanto no pagamento de serviços básicos, como gás, quanto no investimento em material necessário para produção, como máquinas de costura, de uma forma alternativa de renda. [...]
Cantareira - Uma das maiores polêmicas (presente no seu livro inclusive), senão a maior, em relação às remoções foi nos efeitos desta na vida dos removidos, em todos os aspectos (social, econômico, etc...). Há alguns anos a Vila Kennedy foi tema de uma matéria na revista Veja, demonstrando o padrão de vida de seus moradores e apresentando-a como prova dos efeitos positivos da remoção? No entanto, as melhorias que se verificaram na Vila Kennedy podem ser vistas em muitas favelas da cidade. Qual afinal, o balanço das remoções para os removidos e para a cidade?
O padrão de vida nos conjuntos geralmente é melhor do que nas favelas, mas também há violência e preconceito nos conjuntos. Mas há maior facilidade de se conseguir emprego e de ser melhor visto como socialmente integrado quando se mora em um conjunto. Em meus estudos, constatei que há um grupo de pessoas que gostariam de voltar para a Catacumba, pelo fato dessa favela ter sido localizada na zona sul, onde há melhores condições de habitação e saúde. O fato é que muitas dessas pessoas não se recuperaram do choque de serem separados da família, amigos e líderes comunitários. Entretanto, há um outro grupo que acha que a remoção foi a melhor coisa que lhes poderia ter acontecido, tendo orgulho de ter passado a pagar IPTU e condomínio, pois, assim, passou a se sentir incluído, integrado, como parte da cidade. Ou seja, essa questão chega a ser problemática dentro das próprias comunidades. No total, as condições de vida dos moradores de favela melhoraram no geral, mas a renda per capita e educação nos conjuntos é um pouco melhor. Mas não sei se esse quadro chega a ser verdadeiro para todas as favelas e conjuntos. Nos casos em que estudei, sei que em Quintugo e Guaraporé, as condições melhoraram, enquanto em Nova Brasília, as condições estão piores.
Cantareira - Faça uma comparação entre os resultados preliminares de A dinâmica da pobreza urbana e suas implicações para políticas públicas e entre os resultados alcançados em O mito da marginalidade, dando ênfase nos aspectos que mais se modificaram, e que mais a surpreenderam, com relação aos locais e famílias pesquisados. Qual o estágio atual da pesquisa A dinâmica da pobreza urbana e suas implicações para políticas públicas?
O primeiro resultado mais surpreendente, que mais mudou, foi em relação ao crescimento do narcotráfico e da violência. O segundo foi a incapacidade de traduzir os avanços educacionais em avanços ocupacionais e empregatícios. O nível necessário para se obter um bom emprego subiu mais rápido do que o nível de escolaridade, o que acabou por perpetuar a desigualdade social, apesar dos avanços. Apesar disso, muitos dos moradores de favelas continuam otimistas, havendo uma parcela que crê que sua vida irá melhorar, outra parcela que crê que sua vida continuará igual, e apenas uma parcela que crê que sua vida irá piorar, mesmo com o nível de desemprego entre eles sendo maior, tanto entre as gerações mais antigas quanto para seus filhos. Minha pesquisa se encontra em sua fase final, onde coletaremos e analisaremos novas amostragens em comunidades, assim como lideranças, ainda não pesquisadas. Essa fase terminará em setembro der 2004, sendo que a fase de coleta de dados deverá estar terminada em junho de 2004. [...]"
Giuseppe Cocco, 2013:
"Há hoje vastíssima literatura acadêmica sobre favelas. Em meio a esse grande volume de produção e de abordagens, contudo, podemos apontar para um grande eixo em torno do qual se articula boa parte de toda a literatura sobre o fenômeno das favelas. Esse grande eixo é o da marginalidade, ou seja, do contraste que fixa os territórios em que se concentra esse tipo de construção e autoconstrução da moradia popular nas margens do tecido social e urbano formal. As favelas estão estruturalmente associadas às linhas, sinuosas mas onipresentes, de segregação e exclusão espacial dos pobres. linhas que estabelecem espacialmente as modulações sociais e étnicas de uma sociedade e de uma cidade profundamente marcada pelo período da escravidão, as condições de sua abolição e seus impactos nos processos migratórios internos (e também externos). Terreno das margens e da marginalidade, as favelas abrigavam os pobres, e esses constituíam a versão brasileira das "classes perigosas". A partir da década de 1960, o fenômeno da favela passou por duas inflexões importantes, em âmbitos totalmente diferenciados, mas, podemos dizer, que se alimentaram reciprocamente. Por um lado, as migrações internas foram-se acelerando por meio do violento processo de êxodo rural que faria das favelas um fenômeno "marginal" totalmente paradoxal pelos efeitos de escala que passará a caracterizá-lo no Rio de Janeiro: a margem tornou-se, em termos de tamanho, a maioria. Pelo outro, toda uma geração de sociólogos e antropólogos (brasileiros e norte-americanos) se irá formando no estudo das favelas e particularmente na crítica da marginalidade, que passa a ser chamada de "mito", um mito a ser desconstruído. A tese de doutorado da norte-americana Janice Perlman tornou-se a referência clássica dessa nova geração. Apesar de sua originalidade ser contestada por Licia Valladares, o trabalho de Perlman constituiu a primeira grande desconstrução do regime discursivo hegemônico sobre o fenômeno das favelas."
[http://www.ppgav.eba.ufrj.br/wp-content/uploads/2014/01/ae26_giuseppe.pdf].