1969
Brasil, Rio de Janeiro
Fato RelevanteIdiomas disponíveis
Português
Marcadores
Favelas, Interesse Social, Movimentos Sociais Urbanos
Colaborador
Thiago Silva
Citado por: 1
Localizada em uma das áreas mais valorizadas da Zona Sul do Rio, a Praia do Pinto era meta prioritária nas políticas de remoção de favelas do Governo Militar. O incêndio ocorreu em um período de grande tensão, com resistência de moradores, prisão de líderes comunitários e remoções em outras favelas da cidade.
O desastre destruiu cerca de mil barracos deixou mais de 9 mil pessoas desabrigadas. As vitimas foram transferidas para os conjuntos habitacionais da Cidade Alta, Cidade de Deus, Cordovil, para abrigos provisórios da Fundação Leão XIII e para o conjunto Cruzada São Sebastião.
CHISAM, 1969:
"No programa prioritário, que se desenvolve permanentemente foram selecionadas algumas áreas faveladas. Dentre estas encontram-se:
- FAVELA DA ILHA DAS DRAGAS E PIRAQUÊ - situadas nas margens da Lagoa Rodrigo de Freitas há mais de 22 anos e que por sua localização, contaminavam as águas da Lagoa e impediam a construção da segunda pista de contorno da Lagoa.
Devem ser totalmente removidos até fins de março de 1969 430 barracos e seus moradores irão para as habitações construídas na Cidade de Deus e Cordovil, ou para outros locais de sua propriedade.
[...]
- PRAIA DO PINTO E CENTRO DE HABITAÇÃO Nº3 - uma das mais famosas favelas da Guanabara. Situada em área do Estado, em um dos locais mais valorizados da Zona Sul, apresenta chocante contraste com as construções do bairro. Deverá ser totalmente erradicada e seus moradores irão para o Conjunto de Cordovil, Cidade de Deus e outras habitações existentes, cedendo a área para a abertura de ruas e avenidas, reservando-se os quarteirões que se formarem para a comercialização com entidades privadas, aplicando-se os recursos em novas habitações para os próprios favelados."
Janice Perlman, 1976:
"Então, em 1968, logo após a criação da CHISAM, a FAFEG (que já contava com 100 favelas associadas), reuniu-se em congresso e decidiu opor-se vigorosamente à política governamental de erradicação. O relatório oficial do congresso dizia claramente que a oposição da FAFEG era de rejeição de qualquer transferência e a condenação do desperdício humano e financeiro, e dos problemas sociais, resultantes da remoção. Em decorrência desta posição, a FAFEG imediatamente se mobilizou para impedir a ação contra a primeira favela que a CHISAM marcara para remoção - a Ilha das Dragas, no lado oposto da Lagoa Rodrigo de Freitas, em frente a Catacumba. Quase em seguida, os líderes da FAFEG foram presos pela polícia, mantidos incomunicáveis por vários dias, e ameaçados de severas consequências se houvesse qualquer nova tentativa de oposição. Daí em diante cessaram os protestos abertos por parte da FAFEG.
No ano seguinte, todavia, os 7.000 moradores da Praia do Pinto (favela localizada num terreno plano privilegiado, bem no centro do bairro grã-fino do Leblon) recusaram-se, espontaneamente, a sair da favela e ser transferidos. Durante aquela noite, um incêndio "acidental" alastrou-se pela favela: apesar de muitos moradores e vizinhos alarmados terem chamado os bombeiros, estes, evidentemente cumprindo ordens, não apareceram. Pela manhã, quase tudo tinha sido arrasado. Muitas famílias não conseguiram salvar nem seus parcos haveres, e os líderes da "resistência passiva" desapareceram completamente, deixando suas famílias em desespero. No local, construíram-se prédios de apartamentos financiados pelos militares.
Estes fatos contrastam vivamente com a experiência de muitas favelas, no período anterior à tomada do poder pelos militares. [...]"
Licia do Prado Valladares, 1978:
"Três grandes favelas situavam-se às margens da Lagoa [Rodrigo de Freitas]: a Ilha das Dragas, a Praia do Pinto e a Favela da Catacumba, totalizando uma população de cerca de 27.000 habitantes. Tendo-se transformado em zona prioritária para a CHISAM, a Lagoa foi a primeira região a sofrer remoções. [...]
A Ilha das Dragas era uma favela relativamente pequena (2.500 habitantes em 1968), com uma Associação de Moradores bastante ativa e gozando de grande popularidade. A favela mantinha relações com políticos influentes, contando mesmo com a promessa do então Governador Negrão de Lima de que a mesma seria urbanizada, e não removida. Era também uma das associações fortes da FAFEG [...] Quando a CHISAM anunciou publicamente a remoção da Ilha [...] a Associação e a FAFEG mobilizaram os moradores, instruindo-os para que se recusassem a fornecer os dados para o levantamento sócio-econômico. Diante dessa resistência, a CHISAM apelou para outros organismos, em consequência do que vários membros da Associação foram presos. Tal demonstração de força provocou o recuo dos habitantes da Ilha. Acabaram recebendo os assistentes sociais em sua segunda visita, aceitando mesmo o convite para ir de ônibus visitar o conjunto habitacional para onde seriam removidos. Em março de 1969, as últimas famílias instalavam-se na Cidade de Deus.
A Praia do Pinto era uma favela bem maior, contando com cerca de 15.000 habitantes em 1969. Os preparativos de sua remoção tiveram início algumas semanas após a operação da Ilha das Dragas. A resistência aí manifestada não teve a mesma forma organizada da Ilha, desde que a Associação de Moradores não assumiu, oficialmente, posição hostil à ação governamental e nenhuma palavra de ordem foi dada. Ao se iniciarem os preparativos da remoção veio o "aviso" de que não se toleraria qualquer mobilização: um incêndio, cuja origem nunca foi devidamente esclarecida, tomou de surpresa os próprios favelados, deixando perto de 5.000 ao desabrigo e destruindo 1.000 barracos de famílias que ainda esperavam a data da remoção. Esta teve que se antecipar, não seguindo o plano previsto, e as famílias foram removidas para vários conjuntos (em particular, Cidade Alta e Cidade de Deus) e, em caráter provisório, para os vários abrigos da fundação Leão XIII.
A Catacumba, (9.100 habitantes quando da sua remoção) conheceu um processo de remoção totalmente diferente. A operação realizada um ano mais tarde (1970), exemplifica a mudança de atitude dos moradores frente a remoção. Os residentes colaboraram de fato durante todo o processo. A Associação de Moradores apoiou publicamente a ação da CHISAM, conclamando os residentes a colaborarem com os assistentes sociais e com os membros da equipe técnica. A operação desenvolveu-se na maior calma e dentro dos prazos previstos, a imprensa registrando na época a mudança de atitude dos favelados e sua vontade de transferir-se para os conjuntos habitacionais."
Mário Sergio Ignácio Brum, 2012:
"A cobertura da imprensa fala que não houve mortos no incêndio, apenas 32 feridos. Moradores removidos entrevistados durante a pesquisa apontam que teria havido mortos sim, mas nunca este número foi quantificado e nem possíveis vítimas (ou seus parentes) identificadas.
Teria o incêndio sido proposital? Na opinião dos moradores entrevistados na pesquisa, isto surge de maneira praticamente unânime. De qualquer maneira, o próprio Governo da Guanabara admite que serviu aos propósitos remocionistas, tendo sido um "problema imprevisto e grave, mas sem alterar os planos originais, promoveu o Governo apenas a aceleração da mudança."
[...]
O incêndio da Praia do Pinto, cuja remoção foi apresentada como sinal do ímpeto remocionista das autoridades estaduais e federais do período, funcionou, paralelamente, como aviso para as outras favelas da cidade, particularmente as da orla da Lagoa, do grau de tolerância que haveria, a partir de então, com os reticentes à remoção, marcando, de maneira traumática, as relações que a cidade do Rio estabelecia com a parte de sua população que habitava as favelas.
Para os moradores da Cidade Alta, oriundos da Praia do Pinto, de outras favelas removidas ou os que se mudaram para lá por vontade própria, tratava-se de, independentes das análises e projetos governamentais, se adaptarem à moradia num novo lugar e sobreviverem.
O estigma de favelado e o fato de ser ‘indesejado' na cidade tornaram-se uma situação real com atitudes concretas, levada às últimas consequências por parte das autoridades governamentais. As falas a seguir de dois removidos da Praia do Pinto são claras quanto a este sentimento. A primeira é do músico e comerciante Manoel Gomes, sobre o dia da remoção de sua família:
Nós chegamos aqui em caminhão de lixo... A prefeitura cedeu os caminhões e as pessoas chegavam... simplesmente eles comunicavam: ‘Olha, chegou a tua ala e você vai sair. Você tem que sair!' e a pessoa já tinha encaixotar tudo e vir. Então, eu cheguei aqui em caminhão de lixo!
E a segunda é de Dona Margarida:
A gente ouvia falar em São João de Meriti, Caxias, uns lugares que... meu Deus do céu! De repente eu estava fazendo parte dessa coisa horrível!"