1955
Brasil, Bahia
PublicaçãoIdiomas disponíveis
Português
Marcadores
Planejamento Urbano
Colaborador
Igor Queiroz
Citado por: 1
Publicada originalmente em 1955, por Admar Guimarães, membro da equipe do EPUCS dos anos 40 e ex-professor da disciplina Organização Social das Cidades do curso de Arquitetura na Universidade Federal da Bahia, o texto introduz a uma releitura das Conclusões do IV-CIAM e da versão da Carta de Atenas (do original The Town Planning Chart), publicadas no livro Can Our Cities Survive?, de J. L. Sert (1941).
Consta na publicação: 1) a tradução dos textos de J. L. SERT, sendo o da Carta intercalada com notas, em destaque, sobre a Cidade do Salvador e aos trabalhos do EPUCS (Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador), que teve a seu cargo, de 1943 a 1947; 2) a "declaração de princípios" do ante-projeto de um Código de Urbanismo para a Cidade do Salvador; 3) excertos do Decreto-lei nº 701, de 24 de março de 1948 - que dispõe sobre a divisão e utilização do solo na Zona Urbana da Cidade e regula o loteamento de terrenos na mesma zona situados; e 4) uma relação dos Congressos e publicações dos CIAMs.
[Introdução]
"A CARTA DE ATENAS - famosa declaração de princípios do urbanismo moderno - não está suficientemente divulgada entre nós. No círculo mesmo dos que não lhe ignoram a significação e, até, lhe conhecem o contexto, muitos haverá, talvez, que ainda não lhe sabem a origem.
[...]
Programado em março de 1932, em Barcelona, pelo CIRPAC [Comité International pour la Résolution de Problèmes de l'Architecture Contemporaine], o IV-CIAM realizou-se em condições singularmente favoráveis, tendo procedido, de acordo com o tema proposto - "A Cidade Funcional", ao estudo análise dos planos, adrede elaborados pelos respectivos grupos nacionais, de 33 cidades de 18 países da Europa, América e Ásia.
Com efeito, reunidos a bordo do navio de recreio "Patris II", de nacionalidade grega [...], o IV-CIAM efetuou na capital grega [Atenas], cercado do prestígio oficial, suas sessões principais, ao ar livre, no pátio da Universidade, ao pé da Acrópole.
[...]
E foi assim, mercê desse concurso de circunstâncias propícias, que a associação nascida cinco anos antes em La Sarraz lançou, auspiciosamente, os fundamentos da Cidade futura, humanizada pelo respeito às leis da Natureza, ao traçar as linhas mestras de sua arquitetura ideal - harmoniosa e lógica antecipação do Mundo unido e pacífico de Wendell Wilkies ["Um Mundo Só", trad. Brasileira do original inglês "One World", 1943] entreviu e que, já agora, é a aspiração generalizada, ainda que obscura para tantos, de todos os seres humanos.
Foram os resultados do IV-CIAM, sumariados e formulados na viagem de regresso a Marselha, que receberam o nome, por que são hoje conhecidos, de "Carta de Atenas" - significativa homenagem à cidade legendária onde floresceu, à sombra austera do Parthenon, a mais bela civilização do Mundo Antigo."
[Nota do autor]
"O contexto da Carta de Atenas, publicada pela primeira vez em Novembro de 1933, sob o título de CONSTATATIONS, juntamente com as atas e outros documentos do IV-CIAM, em número especial, bilíngue (em grego e francês), do órgão oficial da Câmara Técnica de Atenas, foi, subsequentemente, com o nome de TOWN-PLANNING CHART, reproduzido em inglês, na íntegra - "as drafted by the C.I.A.M.", em apêndice de Can our Cities Survive? - obra que J. L. Sert escreveu por incubênciado Conselho dos CIAM, sob cujos auspícios foi editada em 1942, com uma introdução de Sigfried Giedion, seu preclaro Secretário Geral.
Foi esse texto inglês, escrupulosamente traduzido, o preferido para esta publicação da Carta em língua vernácula. Da versão francesa da autoria do Grupo CIAM-França, que lhe consagrou o nome (La Charte d'Athènes - Ed. Plon, Paris, 1943) aproveitou-se, porém, a divisão em três partes, sem prejuízo todavia da distribuição da matéria pelas oito rubricas do original inglês.
As notas intercaladas, em destaque, no texto da Carta visam a esclarecer os leitores a quem este opúsculo especialmente se destina - estudantes da Universidade da Bahia. Daí, serem tais esclarecimentos, sempre que necessário, para a melhor compreensão dos conceitos ou fenômenos a que se reportam, referidos a esta Cidade do Salvador e aos trabalhos do EPUCS [Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador], - sigla por que é conhecido o escritório que teve a seu cargo, de 1943 a 1947, a preparação do Plano de Urbanismo desta capital.
[...]
O ante-projeto de onde foi extraída a Declaração de Princípios (Anexo-I), que se transcreve textualmente para confronto com os mandamentos da Carta, foi concebido como elemento integrante da Enciclopédia Urbanística em que se haveria de consubstanciar, segundo o programa preestabelecido, o plano de reestruturação e expansão da Cidade do Salvador organizado pelo EPUCS. Nesses "princípios" se condensa, por assim dizer, o espírito que presidiu aos trabalhos daquele extinto escritório e orientou a elaboração do referido Código, cujas normas sobre zoneamento e loteamento já se acham incorporadas à legislação municipal vigente, constituindo o decreto-lei do qual se reproduzem, acompanhadas de dois mapas ilustrativos, algumas de suas disposições sobre o zoneamento local (Anexo-II), - a título de facilitar, por sua objetividade, a inteligência do conteúdo doutrinário do Urbanismo dos CIAM, em que elas se inspiram."
[Trecho comentado de "A Carta de Atenas"]
"O ESTADO ATUAL DAS CIDADES
3_Habitação, primeira função urbana
[...]
As leis vigentes, em verdade, parecem ignorar as consequências da superpopulação, da carência de espaços livres, das condições precárias de tantas habitações e da ausência de serviços comunais. E deletam também não se aperceber das possibilidades ilimitadas que o planejamento moderno e as novas técnicas criaram para a reconstrução das cidades.
[...]
Com um processo evolutivo que muitas vezes escapa a qualquer disciplina, as aglomerações suburbanas tomam frequentemente a forma de favelas - agrupamento desordenado de choças construídas com todos os tipos imagináveis de materiais, procedentes de demolições ou abandonados por imprestáveis. Não obstante, tais aglomerações ainda são francamente toleradas em muitas áreas metropolitanas.
O quadro que a Carta configura, para caracterizar o estado atual das cidades, não está longe de retratar a situação em que se encontra a Cidade do Salvador. Quarteirões de excessiva densidade demográfica; ruas estreitas, tortuosas e íngremes, onde os edifícios se erguem, de cada lado, sem solução de continuidade, em lotes de exigua frente e superfície não raro totalmente construída; carência de espaços livres.
[...]
A habitação - é claro - ressente-se, em tais áreas, dessas deficiências de estrutura e ambiência, que o fenômeno da "invasão" ecológica, decorrente do crescimento demográfico e, também, de novas maneiras de viver e exigências de conforto criadas pelo progresso mecânico, veio ainda mais agravar, fazendo com que os velhos sobrados e casarões coloniais, inadequados ou inadaptáveis às finalidades ou funções novas das zonas em que estão situados, se degradassem econômica e socialmente, e, arruinados, se convertessem em "cortiços" - pardieiros onde se acumula, nas piores condições de higiene e promiscuidade, parte da grande massa da população em falta de alojamento compatível com os precaríssimos meios de vida de que dispõe.
A par dos cortiços, que correspondem, entre nós aos slums das grandes cidades industriais da Europa e dos Estados Unidos, [...] outros aspectos, igualmente expansivos no que tange à habitação, apresenta a antiga metrópole brasileira.
São as chamadas "avenidas", fruto de desumana exploração comercial do solo, - série de cubículos dispostos lado a lado, em porões infectos, ou de casinhotos ao rez do chão, edificadas em fila, paredes meias, encostadas aos prédios vizinhos, uns e outros com as escassas aberturas que possuem, e pelas quais se podem receber ar e luz, dando para a viela ou para o pátio onde se localizam a sentina e a pena d'água, de serventia comum de todo o lote.
São ainda as "favelas" e "mucambos", - aglomerados de choças construídas a êsmo, com materiais usados de todas as procedências, ou de madeira rústica e barro, dito "de sopapo": promovidos, uns, mediante financiamento a juros leoninos, pelo proprietário do solo, dado assim em arrendamento; resultado, outros, das vulgarmente chamadas "invasões" - ocupações subreptícia, na maioria, ostensiva em alguns casos, de terrenos baldios de domínio privado ou publico, - todos eles, por igual, desprovidos de quaisquer instalações ou serviços sanitários.
Segundo dados coligidos pelo EPUCS, nos inquéritos realizados em 1943-1944, calcula-se em cerca de 75% a parte da população local alojada em cortiços, favelas e moradas similares. Daí pra cá o incremento demográfico acusado pelo último censo (1950) não ter alterado, senão para pior, o panorama sombrio da HABITAÇÃO nesta Capital.
[...] Daí, o plano [EPUCS] preconizado para solucionar, gradativamente, o problema, em trabalho, ainda inédito, sobre a habitação popular."
"[...] Busca-se reafirmar os pontos-chave julgados pertinentes para o estabelecimento de outros entendimentos não só sobre a Carta de Atenas e suas versões, mas também explicar os "por quês" da deterioração interna dos próprios CIAM's. E, neste último caso, A Carta de Atenas da lavra LeCorbusiana, mais que um sintoma, pode ser lida como uma espécie de reação do Le Corbusier às outras visões - inclusive entre arquitetos - sobre urbanismo e quem o pratica. No fundo, A Carta é o ponto de inflexão de uma curva que já sinalizava a diáspora entre arquitetos e planejadores, afundada depois, nos anos 60 e 70.
[...]
A versão preparada por J. L. SERT (1942), denominada The Town PLanning Chart, é a mesma traduzida (e comentada) pelo prof. Admar GUIMARÃES, publicada em 1955, na Bahia, curiosamente ali rebatizada por A Carta de Atenas; urbanismo dos CIAM, republicada em 1978. Mas, a rigor - abstraindo-se o título e os comentários no texto) - trata-se de uma tradução criteriosa e fiel ao texto de J. L. SERT, conservando sobre Salvador (destacados integralmente o conteúdo e a disposição das oito rubricas do original, em inglês.
A opção por manter os comentários feitos sobre Salvador [...] decorre da necessidade histórica de registrar como as lideranças locais (ligadas ao EPUCS) absorviam e deglutiam, "antropofagicamente", o pensamento moderno dos CIAM's em nosso contexto, no meado do século XX. É instigante ver que, embora o texto preferido para a tradução de GUIMARÃES seja The Town Planning Chart (1942), o título adotado em português seja o de A Carta de Atenas, retomando o título consagrado pela versão francesa e o mais divulgado no Brasil e no mundo a partir dos anos 50."