1955
Brasil, Rio de Janeiro
ProjetoIdiomas disponíveis
Português
Marcadores
Favelas, Interesse Social
Colaborador
Thiago Silva
Citado por: 1
Em 29 de setembro de 1955 fundou-se, por iniciativa de dom Helder Câmara, Bispo auxiliar do Rio de Janeiro, a Cruzada São Sebastião, que objetivava dar solução racional, humana e cristã ao problema das favelas do Rio de Janeiro.
Concebida durante o 36º Congresso Eucarístico Internacional, evento realizado no Rio em julho de 1955, a Cruzada surgiu em um cenário desenvolvimentista pós-guerra onde a igreja reinventava sua relação com o Estado. Além das ações catequéticas esperadas de uma instituição católica, seus esforços se dirigiram para a realização de justiça social, inclusão dos favelados em um modo de vida que fosse socialmente aceito e consequente erradicação da favela do ambiente urbano. Amplamente divulgada na imprensa durante a segunda metade da década de 50, sua direção se valia de discurso fortemente assistencialista, buscando convencer a opinião pública de que através de sua ação literalmente se salvariam os favelados da vida amaldiçoada dos guetos. Jornais propagandeavam a erradicação das favelas cariocas em até 12 anos, data em que se comemoraria o IV Centenário do Rio de Janeiro.
Financiada por uma política de concessão do direito de preempção de terrenos da União e por doações do Governo Federal (nas administrações de Café Filho e Juscelino Kubitschek) o principal projeto da Cruzada São Sebastião foi a construção de um conjunto habitacional de 945 apartamentos com acentuada influência modernista no bairro do Leblon. O conjunto recebeu, dentre outros, diversos moradores da favela Praia do Pinto, incendiada em 1969. O Cruzada São Sebastião, como foi batizado, se diferenciou de outros conjuntos habitacionais para favelados principalmente por realocar os moradores expulsos da Praia do Pinto para uma região bastante próxima tanto do local de desapropriação quanto de sua fonte de renda, já que a grande maioria servia de mão de obra para a população mais rica do próprio bairro do Leblon.
Estatutos da Cruzada São Sebastião, 1958:
"Aos 30 de junho de 1958, às 15,00 horas, reuniram-se na sede social da Cruzada São Sebastião [...] os membros da Diretoria, Conselho Consultivo Conselho Fiscal que compõem a Assembléia Geral da referida entidade, a fim de deliberarem sobre a proposta da Diretoria relativa à reforma dos estatutos sociais. [...]
Art. 2.° A Cruzada São Sebastião foi constituída para realizar os seguintes fins e objetivos:
a) promover, coordenar e executar medidas e providências destinadas a dar solução racional, humana e cristã ao problema das favelas do Rio de Janeiro;
b) proporcionar, por todos os Meios ao seu alcance, assistência material e espiritual às famílias que residem nas favelas cariocas;
c) mobilizar os recursos financeiros necessários para assegurar, em condições satisfatórias de higiene, confôrto e segurança, moradia estável para as famílias faveladas;
d) colaborar na integração dos ex-favelados na vida normal do bairro e da cidade;
e) colaborar com o Poder Público e com as entidades privadas em tudo aquilo que interessar à realização dos objetivos acima enunciados;
f) colaborar em providências para o retôrno ao campo de imigrantes de áreas subdesenvolvidas, atraídos pelas luzes da cidade e aqui transformados em favelados;
g) exercitar quaisquer outras atividades conexas e correlatas."
Samuel Silva Rodrigues de Oliveira, 2012:
“A Cruzada São Sebastião foi uma iniciativa da Igreja católica, sob a liderança do arcebispo auxiliar do Rio de Janeiro, dom Hélder Câmara. Criada em 1955, ela propunha a “urbanização” das favelas cariocas: no longo prazo, objetivava a construção de conjuntos habitacionais e a remoção das favelas; no curto, buscava ações pontuais, edificando melhorias nas comunidades. […]
[…] A Cruzada São Sebastião tinha como fim a eliminação da desordem urbana em 12 anos, até a comemoração do IV Centenário do Rio de Janeiro, em 1967. […]
[…] a expectativa de transferência da capital federal para Brasília foi experimentada, na comemoração do quarto centenário do Rio, como elemento potencializador da discussão sobre o urbano e o destino da cidade. As autoridades acreditavam que a favela deveria ter um fim. Essa perspectiva esteve presente tanto na Cruzada quanto no “desmanche” do Morro de Santo Antônio no centro do Rio de Janeiro para a construção do Aterro do Flamengo – um dos símbolos do IV Centenário.
[…] Surgido para abrigar a remoção de 171 moradores da favela da Praia do Pinto, ele seria a síntese de um projeto que implicava na incorporação pelos moradores de valores constitutivos da família “burguesa” e católica em contraposição à idéia de promiscuidade implícita nas ocupações pobres. A localização do conjunto habitacional num dos bairros proeminentes da zona sul carioca significaria esse salto rumo à integração dos favelados à vida urbana e nacional, sem recorrer a “luta de classes”. Contudo, as tensões desse projeto mostravam-se antes da conclusão da obra. Na elaboração da proposta, os idealizadores do conjunto habitacional não sabiam se ele deveria se chamar “Praia Pinto”, ou ganhar um nome que simbolizasse o esforço iniciativa católica. Venceu a proposta que apagava o vinculo com a favela, com a designação de “Conjunto da Cruzada São Sebastião”.
[…] Como tem salientado diversos autores, a iniciativa da Igreja no campo das favelas implicava na adoção de uma pedagogia civilizatória para as classes populares. Desde a iniciativa dos Parques Proletários, em 1942, perseguiu-se o objetivo de educação e transformação social da vida do favelado, aproximando-o de valores integrativos à disciplina do mundo do trabalho e da família e contrastivos ao universo da malandragem. As iniciativas da Igreja nesse campo já transcorriam no âmbito da Fundação Leão XIII, criada em 1947.”
OLIVEIRA, S. S. R. A Cruzada São Sebastião e a política de favelas no Rio de Janeiro. In: ENCONTRO REGIONAL DA ASSOCIAÇÂO NACIONAL DE HISTÓRIA DE MINAS GERAIS, 18., 2012, Mariana. Anais... Mariana, 2012. Disponível em ANPUH-MG
Bart Slob, 2002:
“O primeiro e maior projeto da Cruzada São Sebastião foi a construção de um conjunto habitacional na favela da Praia do Pinto, situada no Leblon, às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, com uma população de aproximadamente 7.000 pessoas e um total de 1.546 barracos. A área onde se construiria o Bairro São Sebastião (assim como a área vizinha, onde já se encontravam os clubes Caiçaras, Monte Líbano, Paysandu e Associação Atlética Banco do Brasil) fora provavelmente, durante algum tempo, um local onde se depositara entulho de construções realizadas nos arredores. Depois de ter aterrado uma parte da Lagoa Rodrigo de Freitas, a Prefeitura do Distrito Federal cedeu o terreno à Cruzada São Sebastião. Desde o início, os quatro clubes que cercavam a área manifestaram-se contra a construção do Bairro São Sebastião, “alegando que o bairro se transformaria rapidamente numa favela”. [...]
Convém lembrar aqui a quarta meta da Cruzada São Sebastião, já mencionada no texto, que era “colaborar na integração dos exfavelados na vida normal do bairro da Cidade”. Conseguir-se-ia integrar os ex-favelados ou “proletários” na vida social “normal” através da mudança destes para uma casa “normal”, ou seja, para uma casa com um mínimo de conforto. Esta mudança seria acompanhada pelo Serviço Social da Cruzada, cujas assistentes sociais se empenhariam em educar e guiar os ex-favelados aspirantes à “vida normal”. Mas como poderíamos definir os termos “vida normal” e “vida social”, tantas vezes usados em textos escritos pelos idealizadores da Cruzada e seus simpatizantes? Parece que dizem respeito a um estilo de vida que está indissoluvelmente associado ao surgimento, a partir dos anos 40, do apartamento como padrão habitacional na Zona Sul do Rio de Janeiro. Nas décadas de 40 e 50, o apartamento, além de constituir-se um símbolo de status, passou a representar um estilo de vida comum a boa parte das camadas médias da Zona Sul do Rio de Janeiro. A “vida normal no bairro da cidade”, para os planejadores da Cruzada, era a vida em edifícios de apartamentos, em condomínio, uma forma de morar que havia transformado o bairro de Copacabana e que agora, por volta de 1955, estava se difundindo em Ipanema e no Leblon.
É importante destacar justamente o que a Cruzada não pretendia fazer: construir casas populares tradicionais, como as casas erguidas nos parques proletários. Ao optar pela construção de blocos habitacionais, a Cruzada seguiu uma tendência inovadora na arquitetura da habitação social brasileira, a qual fora influenciada pela vanguarda moderna européia dos anos 20 (formada por expoentes de movimentos e tendências artísticos como o Construtivismo russo, De Stijl e Bauhaus) e, em especial, pelas idéias de Le Corbusier (Charles-Édouard Jeanneret, 1888–1965) sobre a racionalização e a industrialização do sistema de produção das moradias.
No Brasil, algumas propostas davanguarda moderna chocaram-se com as posturas predominantes nos debates sobre habitação nos anos 40. As idéias de Le Corbusier sobre o rompimento das fronteiras entre o público e o privado e a proposta de construir habitações multifamiliares - onde várias famílias dividiam banheiros e áreas de serviço, como nos Höfe em Viena - desarmonizavam com posicionamentos bastante influenciados pela Igreja Católica, segundo os quais a família deveria ser protegida da promiscuidade e dos contatos perigosos com a rua, isto é, com o espaço público ou coletivo. Portanto, espaços considerados privados como banheiros, áreas de serviço e cozinhas não deveriam se tornar equipamentos públicos em conjuntos habitacionais, ao contrário de creches, escolas, postos de saúde e cinemas, que poderiam exercer o papel de instituições de controle e reprodução ideológica. Esta adaptação brasileira das idéias da vanguarda moderna sobre habitação econômica ficou bem visível nos primeiros edifícios residenciais construídos no Rio de Janeiro pelo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI), criado nos anos 30, que, além de proporcionar benefícios previdenciários e assistência médica aos industriários, colaborava na execução das políticas habitacionais governamentais. Os edifícios construídos pelo IAPI podem ter servido como exemplo para a Cruzada, pois algumas das sugestões da vanguarda moderna quanto à habitação social também são perceptíveis na planta dos dez blocos residenciais do Bairro São Sebastião. [...]
Em novembro de 1955, começou-se a construir em ritmo acelerado para atender ao prazo estabelecido pelo presidente Café Filho, mesmo sem dispor da dotação prometida por ele. A votação final da verba foi atrasada até junho de 1957, um ano e meio depois de iniciada a construção do Bairro São Sebastião. Nesse período, a Cruzada também conseguiu outra fonte de renda. O Governo Federal concedeu à Cruzada São Sebastião o direito de aterrar os mangues e alagadiços situados à margem da Avenida Brasil, pertencentes à marinha, a partir da Rua Lobo Júnior até o Canal do Rio Irajá, e, desse ponto, até o Rio Meriti, à margem direita da Avenida das Missões. Depois de realizar trabalhos de drenagem, aterro, dragagem e urbanização, essas áreas seriam subdivididas em lotes e postas à venda. Assim, obter-se-ia os necessários recursos para possibilitar a execução de um plano de urbanização de favelas. Após entendimento com o Prefeito Francisco Negrão de Lima, com o Ministro da Marinha e o Diretor do Patrimônio, o presidente Juscelino Kubitschek em 19 de julho de 1956 assinou o Decreto nº 39.635 que concedia o direito de preferência ao aforamento das áreas referidas e de uma faixa de mangues, do Rio Meriti ao Rio Estrela. Nos terrenos alagadiços existiam algumas favelas, o que tornava muito difícil a valorização pela União ou pelo Distrito Federal. Para resolver o problema, d. Hélder encontrou uma solução paradoxal: remover os moradores dessas favelas para outro local. Não se sabe exatamente para onde estas pessoas foram removidas, mas certamente não se instalaram em edifícios de apartamentos nas adjacências das suas antigas comunidades.”
SLOB, B. Do barraco para o apartamento: A “humanização” e a “urbanização” de uma favela situada em um bairro nobre do Rio de Janeiro. 2002. 160 f. Trabalho de conclusão de curso (Graduação) – Departamento de Estudos Latino-americanos, Universidade de Leiden, Niterói, dez. 2002.
José Arthur Rios, 2000:
“Quais são suas principais críticas à Cruzada São Sebastião?
Primeiro, a localização é ruim. Segundo, o critério de escolha dos moradores nunca foi suficientemente esclarecido, criando-se uma camada privilegiada em relação aos outros que não tiveram acesso. É claro que havia um tipo qualquer de apadrinhamento, coisa a que eu me opunha firmemente, assim como fui contra todo tipo de cabo eleitoral, fosse político, padre ou o que fosse . Eu tratava a todos da mesma maneira Havia alguns padres que faziam um trabalho muito interessante em favelas; tudo bem, eu colaborava com eles, mas no momento em que se apresentavam como representantes da favela, eu dizia: "Lamento, mas existe uma diretoria da associação, e eu só me entendo com ela". No caso da Cruzada, d. Hélder não aceitava isso, era muito apaixonado pela Cruzada e se julgava seu único representante.
Terceiro, a maneira como foram obtidos aqueles terrenos, de enorme valor imobiliário; dom Hélder participou de uma série de jogos políticos com o Juscelino para obter aquela área. E, finalmente, aquilo não passa de uma favela vertical. e eu sempre combati esse tipo de favela; chamava de gueto. Nos subúrbios, os antigos institutos de aposentadoria plantaram várias favelas verticais, que são focos de crime, de droga, de prostituição; e é uma desgraça, porque não há nenhuma gerência dentro desses conjuntos. A favela é outra coisa, tem outra possibilidade de realização, de participação, que o conjunto não tem. O conjunto sufoca.”
RIOS, J. A. Capítulos da memória do urbanismo carioca: depoimentos ao CPDOC / FGV. Américo Freire e Lúcia Lippi Oliveira, organizadores. Rio de Janeiro: Folha Seca, 2002, p.71.
Sandra Cavalcanti, 2000:
"Quando vereadora, não concordei com a instalação da Cruzada São Sebastião, ali no Leblon. Considero, até hoje, que cometeram um erro gravíssimo Lembro-me bem de que, na ocasião, chamei a atenção para vários conflitos que o projeto iria criar, principalmente para os próprios favelados. O bairro era formado por uma comunidade economicamente bem-sucedida la ser difícil entrosar a população da noite para o dia. Haveria, certamente, um choque de culturas, desejos e aspirações Como de fato ocorreu. Vejo hoje que estava certa. A Cruzada ainda é hoje um enclave. As pessoas não mudaram de vida, nem foram assimiladas. O problema é sério."
CAVALCANTI, S. Capítulos da memória do urbanismo carioca: depoimentos ao CPDOC / FGV. Américo Freire e Lúcia Lippi Oliveira, organizadores. Rio de Janeiro: Folha Seca, 2002, p.81.
Jornal do Brasil, 1956:
“A Cruzada São Sebastião e a urbanização das favelas [...]
O problema da urbanização das favelas no Rio de Janeiro vem, como se sabe, de há muito, desafiando uma pronta solução dos poderes competentes.vPara resolve-lo, inumeros estudos e planos já foram realizados, mas, infelizmente, até há pouco tempo tais estudos e planos não passaram disto, e o problema vinha dia a dia se agravando não fosse a atitude decisiva e corajosa da igreja que, sem demagogia ou outro interesse qualquer resolveu enfrenta-lo. E o fez através de seu Bispo Auxiliar D. Helder Câmara que assumiu o comando geral da ofensiva, desta batalha que, estamos certos irá ser coroada de pleno êxito. E as primeiras vitórias já se fazem sentir na praia do Pinto, no populoso bairro do Leblon onde as primeiras habitações condignas estão levantadas e quase já prontas, para os favelados. […]
Os representantes dos principais jornais e estações de Rádio desta Capital compareceram, ontem à residência de Sumaré, do Cardeal-Arcebispo D. Jaime de Barros Câmara, convocados que foram a fim de debaterem com S.ª Eminência o rumoroso problema. [...]
Em seguida falou o Arcebispo D. Helder Câmara que fez um longo histórico da ideia de urbanização das favelas, que já vinha de há muito mas que só veio a ser concretizada após a realização do 36º Congresso Eucarístico Internacional. Com um mapa do Rio nas mãos, D. Helder disse que a ravidade do problema é de tal ordem que existem no Rio cerca de 150 favelas e mais de 400 mil favelados, numero este equivalente à população de Belo Horizonte […] apresentou o plano geral da igreja, da Cruzada São Sebastião para a urbanização das favelas, um plano inegavelmente magnífico.”
A Cruzada São Sebastião e a urbanização de favelas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 6 jun. 1956. 1º Caderno, p. 12. Disponível em Hemeroteca Digital Brasileira
Jornal do Brasil, 1957:
"Das pocilgas onde viviam na mais abjeta promiscuidade, os favelados passam hoje para os confortáveis apartamentos que a grande Cruzada de São Sebastião lhes construiu no Leblon. De agora em diante, a vida, que lhes parecia tão má, perversa e negando-lhes até o direito de morar com decência, oferece-lhes perspectivas novas de paz e segurança. Seus filhos, que chafurdavam na lama e na imundície, expostos a perigos sem conta resultantes da falta de higiene, já agora respirarão ares salutares e terão motivo para olhar o mundo com alegria e confiança. [...]
A Cruzada falharia à sua altíssima finalidade se fosse apenas uma arrecadação material de recursos, quando o que se queria é que significasse a mobilização dos ricos de boa vontade em favor dos seus irmãos pobres desamparados. [...]
Nesta manhã radiosa, as primeiras turmas de favelados passarão para seus apartamentos. Outros edifícios se construirão, tantos quantos bastem para abrigar essa população numerosíssima que apodrecia nos casebres das favelas."
BRITTO, C. A Grande Cruzada. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 3 jan. 1957. 1º Caderno, p. 5. Disponível em Hemeroteca Digital Brasileira