1992
Brasil, Bahia
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Português
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Requalificação, Espaço Público
Colaborador
Santiago Cao
Citado por: 1
RODRIGUES, 1995:
"[...] o Pelourinho/Maciel deveria ser uma vitrine do turismo baiano, e, portanto deveriam se realizar ali obras que recuperassem fisicamente a área, mas que estivessem atentas às novas necessidades, que seriam instalar lojas de artigos turísticos, bares, etc.
[...]
Nós somos, na realidade, a oposição a essa política; nós somos oposição a essa forma de viver em cidade. Mais do que isso, nós travamos nos últimos 10 anos uma grande luta para que o Pelourinho/Maciel fosse recuperado, mas o nosso principal objetivo era a recuperação humana, era a recuperação social e a recuperação cultural.
[...]
a maioria das pessoas que moravam ali e que estão morando em bairros distantes ou mesmo no Rua 28 de Setembro - uma rua próxima - sistematicamente voltam. Elas estão lá andando, vendendo, brigando, porque aquela é a área onde aprenderam a fazer tudo, a andar, a beber, a comer, a usar drogas, a brigar com a polícia, a ver os soldados da polícia representando o Estado
[...]
Esta população continua voltando como se voltasse ao ponto de partida, como se, movida por um banzo ou por um sentimento de saudade, continuasse a dizer: "Eu continuo vivendo nessas casas". Só que as casas agora são da Benetton, do Boticário, brevemente o Mc Donald´s e de uma serie de organizações e de instituições que tradicionalmente renegam a população negra até mesmo no papel de consumidor"
FERNANDES e GOMES, 1995:
"[...] é importante lembrar que a tentativa de recuperar o centro antigo de Salvador com fins explicitamente turísticos não é uma novidade. Isto vem sendo tentado, de forma mais ou menos direta, há aproximadamente 20 anos. Essas tentativas de requalificação do centro antigo de Salvador vão se desenvolver em paralelo à própria redefinição do papel desempenhado pela área central da cidade: a partir do momento em que certos setores perdem dinamismo, os veremos emergir como objeto de ações de preservação."
LUCHIARI, 1998:
"Este movimento entre o velho e o novo, acelerado pela urbanização turística, gera novas paisagens, consome outras, trás à cena novos sujeitos sociais, elimina ou marginaliza outros e redesenha as formas de apropriação do espaço urbano, substituindo antigos usos e elegendo novas paisagens a serem valorizadas para o lazer. A criação destrutiva da urbanização turística desafia a todo instante a sobrevivência de antigas paisagens e a resistência do lugar."
CORREIA FILHO, Julho 2008:
"Antes, vivia na Rua São Francisco, também no Centro Histórico, em um cômodo de três por cinco metros, com Júlia, a mãe, dois irmãos, o marido da mãe, a sogra da mãe e a cunhada. ‘Éramos oito.' Enquanto relembra, Lidiane mostra com gestos a configuração da antiga casa. ‘Imagine que ali era o fogão, uma pia, ali as camas e vários colchões e uma mesa, que tinha que desarmar pra dormir todo mundo.' Agora imagine que esse passado é ainda o presente de milhares de pessoas, vitimadas por um projeto de revitalização excludente, iniciado na década passada, no governo de Antonio Carlos Magalhães, para tornar esse Patrimônio da Humanidade perfeito para turistas, impensável para seus moradores.
Durante as seis etapas anteriores do projeto foram indenizadas 1.800 famílias, empurradas para regiões mais afastadas do centro ou para a periferia. Executadas ao longo de 16 anos, essas etapas de "requalificação" do Centro Histórico nunca incluíram a população pobre. No lugar, ocupando apenas o térreo dos prédios, foram colocados restaurantes e lojas, com suas fachadas restauradas e bem pintadas. Ninguém morando. O Pelourinho virou um ‘shopping a céu aberto'."
BARRETO, 2008:
"A intervenção do Estado sobre os imóveis situados nos centros antigos, por serem, em sua maioria, dotados de riqueza arquitetônica, histórica e artística, em geral é orientada pelo ato de tombamento. Através deste, o bem adquire a condição de patrimônio cultural para efeito de conservação e preservação, sem sair da esfera particular, mas impondo ao proprietário limitações no direito de uso e fruição sobre o bem, subordinando-o a um regime especial que lhe implica vínculos de destinação, de modificabilidade e de relativa inalienabilidade, como orienta o Decreto-Lei no 25/37 (BRASIL 1937):
Art. 11. As coisas tombadas, que pertençam à União, aos Estados ou aos Municípios, inalienáveis por natureza, só poderão ser transferidas de uma à outra das referidas entidades.
Art. 17. As coisas tombadas não poderão, em caso nenhum, ser destruídas, demolidas ou mutiladas, nem, sem prévia autorização especial do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ser reparadas, pintadas ou restauradas, sob pena de multa de cincoenta por cento do dano causado.
[...]
A opção pela medida mais extrema, adotada pelo Poder Executivo do Estado da Bahia na realização das etapas do Projeto de Recuperação do Centro Histórico, qual seja, a perda total e absoluta da propriedade pelo particular, revestiu-se de ato abusivo e totalmente descabido por dois flagrantes motivos.
O primeiro, refere-se ao fato de que a conduta individual era perfeitamente compatível com o uso público dos imóveis afetados, vez que, seus moradores ali residiam e desempenhavam suas atividades profissionais e em nada ameaçavam as estruturas dos bens tombados. O segundo motivo é que, além de o exercício da propriedade individual não atentar contra o bem comum da coletividade, o fim público
da preservação do patrimônio histórico e cultural no Pelourinho só seria contemplado de forma plena com a permanência daquelas pessoas em seus respectivos espaços. Afinal, elas representavam, também, os verdadeiros edificadores das diversas histórias do local.
Sob tais circunstâncias, orienta a regra, cabia ao Poder Executivo auxiliar os proprietários a preservar o bem tombado, através dos meios oferecidos na própria legislação do tombamento. Quando se eximiu de ações seguras, contínuas e eficientes sobre os imóveis da área tombada, praticamente desfuncionalizando seus órgãos técnicos de fiscalização, como o IPHAN e o IPAC, o Governo deixou explícito que seu propósito para a área passava ao largo de contemplar os direitos da população local sobre aquelas casas.
Na ações descritas, o poder constituído optou por não aplicar a lei - no caso: o auxílio aos moradores para que cuidem dos imóveis afetados pelo tombamento -, e decidiu tornar como regra o uso da desapropriação realizada por meio de decreto.
[...]
Os atos expropriatórios repercutem diretamente na vida cotidiana das pessoas que habitam o lugar. Assim, sob o manto da legalidade, o Estado passou mesmo a violentar as próprias condições de existência das pessoas que moravam nos imóveis em discussão.
[...]
Nos fatos descritos, o Governo do Estado da Bahia, pela desapropriação dos imóveis do centro antigo e em face das pretensões econômicas, colocou em curso muito mais do que uma ação governamental de preservação de seus bens históricos, ele baniu as pessoas do seu habitar. Fato semelhante pode ser observado, no segundo capítulo, acerca da reprodução das periferias nas cidades e do banimento de seus habitantes dos serviços urbanos.
Nas ações foi patente o ímpeto esteticista para o Pelourinho, desfigurando os velhos rostos e símbolos do Centro - pequenos comerciantes, sapateiros, prostitutas, músicos, capoeiristas, terreiros - para imprimir-lhe uma nova imagem: agora são os empresários, donos de joalherias, casas de show, franquias da Benetton, do Boticário, etc. Diversas famílias - cerca de 90% que ali viviam foram tragicamente expulsas de suas casas (e juntamente com elas a cultura que construiu e deu identidade ao espaço), ocupando hoje ruas, favelas e lugares marginais, à espreita do olhar do turista e dos sobrados reformados (antigas casas) - de estética mais imponente, mas também mais amorfa, porque despida de seus verdadeiros atores históricos (Memorial de Resistência dos Alfaiates contra a ação de desapropriação do prédio dos Alfaiates, 2001).
Às famílias, R$ 700,00 (setecentos reais), R$ 1000,00 (um mil reais), R$ 2000,00 (dois mil reais) e a desconstrução de toda uma vida. Aos empresários, incentivos fiscais, anistias de dívidas e imóveis prontamente reformados; ações que transformaram um espaço privilegiado da história num grande shopping center a céu aberto.
[...]
O uso desenfreado e injustificado dos procedimentos expropriatórios, as expulsões das famílias, o esfacelamento dos grupos culturais, da convivência comunitária e a tentativa de quebra dos laços identitários dessas pessoas com o lugar acusam os processos de gentrificação90, que são inerentes ao modelo de cidade pensada para Salvador, com o Projeto de Reforma do Centro Histórico.
Segundo Barros e Pugliese (2005), cerca de 95% das pessoas que ali viviam foram tragicamente expulsas de suas casas. O que atesta a proporção da gentrificação imposta.
"a maior parte hoje vive no entorno do Centro Histórico, na comprida Baixa dos Sapateiros, como população de rua, ainda vinculadas ao território do Pelô, onde se esbarram constantemente com forças policiais que os impedem de transitar por ali."
Sobre este fato, comentam D. Celina e Sr. Jorge Caboclo, moradores do Pelourinho expulsos nas primeiras etapas do projeto:
Cheguei na Bahia em 61, morei no Pelourinho, morei no Maciel
[...]
Eu não vou mentir eu tenho que falar a verdade, eu prefiro o Pelourinho de hoje, se eu tivesse uma condição de morar no de hoje, mas hoje é muito caro, só tem lojas bacanas, não existe moradia mais, quem passa lá só vê lojas bonitas, coisas lindas, serenatas, aquelas coisa bonitas. Que condição eu tenho? Nem de chegar perto. Então, eu tenho que me conformar, né? Eu não gostaria de sair daqui, essa é a verdade, não gostaria de sair daqui, que aqui dinheiro eu não quero, eu quero ficar com o local porque aqui eu cuido disso aqui há muito tempo. As pessoas que moravam no Pelô? Quem morava no Pelô ficou pelado, quem saiu daqui ficou pelado, está arrasado morando nas casas de papel na Baixa do Sapateiro, no São Francisco, na Praça da Sé, como todo mundo sabe, só não vê quem não quer vê. Quem quer ver sabe que os pessoal que foi indenizado aqui no Centro Histórico estão tudo na miséria, o que eu acho que eles deve fazer mesmo é deixar a gente por aqui mesmo porque quem cuida do lugar é que é o dono, cê ver como é que está isso daqui, tudo lindo (AVESSO DO PELÔ, 1998)."