1981
Brasil, Rio de Janeiro
PublicaçãoIdiomas disponíveis
Português
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Favelas, Movimentos Sociais Urbanos
Colaborador
Rebecca Araújo
Citado por: 1
Movimentos Urbanos no Rio de Janeiro contextualiza o processo de urbanização da favela de Brás de Pina e as tentativas de melhorias habitacionais das favelas do Morro Azul, abordando sobre a luta dos moradores no bairro do Catumbi contra um plano autoritário de renovação urbanística que na verdade tenta disfarçar uma especulação imobiliária.
Carlos Nelson Ferreira dos Santos, 1981:
Desde o início da década passada os chamados Movimentos Sociais Urbanos vêm atraindo a atenção dos estudiosos das cidades e das sociedades contemporâneas em geral. Começaram a se fazer muito evidentes conflitos e ajustamentos de poder que pareciam originários ou, pelo menos, específicos das grandes cidades. Eram reivindicações ligadas à organização coletiva do modo de vida, dando lugar a formas de mobilização, a revoltas e a arenas de negociação de importância crescente. Estaria se configurando uma novidade? Tratava-se de uma versão peculiar da luta de classes referenciada às peculiaridades fenomenológicas das cidades? Logo surgiriam campeões de correntes antagônicas dentro deste campo de ideias, inaugurado “escolas”. Destes o mais notável é o Prof. Manuel Castells, sociólogo bastante conhecido nos meios especializados brasileiros. O mais interessante é que a discussão, que se propunha atualíssima sobre um tema igualmente atual, jamais conseguiu disfarçar suas tendências moralistas. Por mais voltas que se desse, sempre se voltava a cair na antinomia urbana versus rural, cujas raízes no Ocidente podem ser rastreadas para além dos gregos anteriores a Cristo.
No Brasil o debate sobre Movimentos Sociais Urbanos está um tanto defasado. Só agora se levantam questões e ideias que em outros centros já estão na terceira geração. Não que o país estivesse livre de problemas sociais nas suas cidades mais importantes. Tinha-os até demais, devido às transformações no cenário urbano dos anos cinquenta em diante. Só agora, porém, há espaço para um exercício de reflexão mais consequente. A desvantagem acaba produzindo alguns resultados positivos. A crítica pode ser dirigida, ao mesmo tempo, aos eventos incrustados na recente história do desenvolvimento urbano brasileiro e ás teorias com que se tenta explicá-los.
Este livro procura explorar os movimentos de uma perspectiva antropológica. Com isto, o autor recorre a instrumentos que parecem os mais adequados à natureza e à escala dos casos com que trabalha. Contorna ainda certos impasses e esclarece área mal definidas nas abordagens sociológicas e políticas que são as mais correntes. A base das analises é o registro etnográfico de três situações ocorridas no Rio de Janeiro: o processo de urbanização das favelas de Brás de Pina e Morro Azul, e a luta no bairro do Catumbi contra um plano autoritário de renovação urbanística que procurava, em realidade, disfarçar uma especulação imobiliária. No caso o autor e ator se confundem, já que, nas histórias apresentadas, o autor assumiu papéis de maior ou menor destaque. Além de suas próprias memórias e anotações, ele recorreu a outros estudos realizados sobre o assunto, a entrevistas com personagens, a recortes de jornais e arquivos das associações de moradores. Ao fazê-lo, usa um estilo vivo que se assemelha à linguagem que as pessoas usam no dia-a-dia, parecendo pensar alto.
SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Movimentos urbanos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
Carlos Nelson Ferreira dos Santos, 1981:
No final de 1964, as favelas passaram a ocupar grande espaço na mídia, não apenas pelos enormes estragos causados pelas fortes chuvas, chamando a atenção para as suas precárias condições, mas pela resistência de uma favela à tentativa de remoção pelo então governador, Carlos Lacerda, para as vilas construídas com financiamento da Aliança para o Progresso (Vila Aliança e Vila Kennedy). A favela em questão era Brás de Pina. Um pouco antes, os cariocas haviam assistido ao espetáculo de uma favela quiemando em chamas por uma noite inteira, o morro do Pasmado, em Copacabana, a primeira a ser removida. O incêndio seria o símbolo de uma nova era que se pretendia inaugurar: Lacerda, lembrando as idéias de Mattos Pimenta na década de 1920, prometia a extinção de todas as favelas do Rio, oferecendo a seus moradores casas seguras, “modernas” (e muito distantes dos locais aonde moravam, a valiosa Zona Sul), das quais seriam “proprietários”.
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Algumas ações e maneiras de ser e de entender as coisas, que eu usava qualificar, com muita rapidez, como “alienadas”, olhadas assim de perto, adquiriram outro sentido. Passaram a se referenciar a seus próprios campos e arenas, apareceram como elementos de dramas particularizados, frente aos quais, por não saber como me comportar, o alienado era eu. De observador de padrões e arranjos dos espaços públicos e privados e de candidato a interventor nas suas formas de produção e consumo, fui me transmutando em observador das inter-relações sociais e das redes de significados. Com a prática, eu e meus colegas fomos notando que isso parecia contar mais para os favelados do que as razões materiais ou práticas, em cujo inconteste predomínio acreditávamos ao entrar nas favelas como neófitos. De fato, fomos vendo que o mais fascinante resultado do que fazíamos era o que acontecia a partir daí e totalmente fora de nosso controle. Quanto mais inventávamos sofisticadas maquinações sobre o espaço, a economia e os comportamentos sociais, mais éramos superados pelos processos do dia-a-dia individual e coletivo dos moradores.
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Como urbanista nunca tive melhor experiência profissional do que a esse tempo em que trabalhamos tão diretamente com os nossos “clientes”. Ainda que parecesse lógico o contrário, é muito raro que urbanistas tenham contatos face a face com as pessoas para quem fazem planos. Viviamos com o escritório cheio de favelados que invadiam para ver o que fazíamos e ficavam para discurssões que varavam a noite. Era emocionante ir recebendo aqueles pedaços dos mais diversos papéis e ir vendo um trabalho que surgia aos poucos.
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O que está acontecendo em subúrbios, favelas e áres periféricas nas cidades brasileiras é o processo arquitetônico e urbanístico mais interessante em todo o país: ai se desenvolvem respostas que são formas novas, nascidas do encontro da pobreza, sub-desenvolvimento e cultura tradicional com a dominação de um mundo moderno, industrializado e tecnológico. As respostas teriam por papel servir de ponte entre as duas coisas. Por essa razão, é necessário começar a trabalhar sobre elas e tentar compreender as suas regras.
SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Movimentos urbanos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
Carlos Nelson Ferreira dos Santos, 1981:
Vou me valer de três estudos etnográficos que considero representativos de MSUs no Rio de Janeiro. Trata-se de trabalhos diversos ligados ao planejamento urbano, executados nas favelas de Brás de Pina e Morro Azul e no bairro do Catumbi, nos quais tive participação ativa. Todos os lugares que cito se situam na área urbana do atual município do Rio de Janeiro. Como me importa, antes de mais nada, o registro de mudanças em processos, apresentarei uma versão da história do que ocorreu em cada uma dessas localidades. Em Brás de Pina atuei como planejador e executante de estudos e planos urbanísticos. Em Morro Azul fui um observador do plano de outra pessoa, que por sinal nem era técnico. No Catumbi fui um consultor para os assuntos de minha especialidade, arquitetura e urbanismo. Os contatos de campos foram largos no passado (Brás de Pina, mais ou menos cinco anos; Catumbi, um ano; Morro Azul, um ano e meio) e retomados recentemente para os fins específicos do presente estudo.
Além de minhas próprias anotações e relatórios antigos, pude usar material alheio, porque, pelo menos para Brás de Pina e Catumbi, já há algumas teses escritas que serviram de material etnográfico complementar.
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Brás de Pina, Morro Azul e Catumbi foram movimentos de caráter local, têm uma história referenciada a um lugar e a seus habitantes. Como contraponto, e com a intenção de corrigir as estreitezas do episódico, trabalhei um pouco com a história da FAFEG. A Federação das Associações dos Favelados do Estado da Guanabara era uma associação de associações de moradores. Dessa forma, era mais simbólica e mais abrangente e tratava a categoria morador de um modo mais “puro”, mais “racional”. Para mim tem a particular vantagem de ter-se desenvolvido e de ter ficado em destaque mais ou menos no mesmo período que aconteceram os meus MSUs. De certa forma, ela própria comandou uma espécie de MSU coletivo e, portanto, muito interessante. Para reconstruir as ideologias da FAFEG, usei os documentos finais dos congressos de 1967 e 1968, que ficaram famosos por suas conclusões, e entrevistas que fiz recentemente com um dos meus ex-líderes que é meu amigo particular.
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Ninguém em Brás de Pina, Morro Azul e Catumbi precisou inventar uma posição para mim que resolvesse esta coisa inexplicável com seu contexto: um antropólogo. Anthony Seeger me contou uma vez que conseguia relacionar-se com os índios porque fazia música e eles sabiam o que era isso. Posso dizer quase a mesma coisa: os moradores se entendiam comigo porque eu podia propor planos urbanísticos e eles não só sabiam para que serviam, mas precisavam deles. Se há antropólogos que fazem ótimos trabalhos de reflexão sobre material etnográfico alheio, posso sugerir aqui outro paralelismo: é como se eu, quando tinha outra identidade, estivesse mandando material para o meu “eu antropológico” atual reelaborar.
SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Movimentos urbanos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
Silvana Lamenha Lins Olivieri, 2007:
A base do pensamento e da prática urbanistíca de Carlos Nelson se construiu principalmente através de sua experiencia na favela de Brás de Pina, no Rio de Janeiro, durante a 2ª metade da década de 1960, num momento complicado da ditadura, quando a regra era a remoção dos favelados para áreas distantes. Realizada pela Quadra Arquitetos Associados – grupo formado por Carlos Nelson e seus colegas Sylvia Wanderley, Rogério Aroeira Neves e Sueli de Azevedo -, a urbanização de Brás de Pina foi uma experiencia duplamente pioneira: era tanto a primeira urbanização de favela como o primeiro caso de participação de moradores em arquitetura e urbanismo no Brasil.
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O plano, desenvolvido inicialmente pelos favelados com a assessoria da Quadra, acaba sendo encampado pelo governo estadual, que cria um Grupo de Trabalho para coordenar e desenvolver o programa de recuperação dasa favelas – que incluiria , numa primeira etapa, também as comunidades de Morro União, Mata Machado e Guararapes, procurando trabalhar em cooperação com as comunidades e integrá-las ao bairro onde se inseriam. Em 1968, o GT é transformado na Companhia de Desenvolvimento de Comunidades – CODESCO, com a tarefa de imprementar, primeiramente em Brás de Pina, um plano urbanitíco, composto, basicamente, por obras viárias e de saneamento, regularização fundiária e finaciamento para aquisição de materiais de construção, contando, tanto na fase de projeto como na execução, com a assessoria técnica da Quadra.
Durante o processo de urbanização da favela conduzido por Carlos Nelson e seus colegas – sob a influência do trabalho realizado por John Turner no Peru e seguindo os princípios do advogacy [sic] planning – várias decisões foram tomadas pelos habitantes, como o uso de espaços livres e localização de serviços, “demonstrações formais do democratismo que se pretendia imprimir no plano”. Os projetos das casas eram desenhados e executados pelos próprios moradores, que recebiam sugestões dos arquitetos, sem entretanto interferirem na decisão de fachadas, materiais de construção e cabamentos. Com o tempo, percebeu-se que essa “participação” tinha sido algo artificial, forçado, pois “se tratavam de espaços e de atividades que só tinham sentido na cabeça dos planejadores”. A verdadeira participação só iria ocorrer “de maneiras inimagináveis e todas inventadas e sob o controle dos interessados direitos, os moradores” [...].
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Carlos Nelson constatava que em vez de problemas, as favelas eram portadoras de respostas: a inventividade popular que nelas se manifestava deveria ser uma fonte de ensinamento para as futuras intervenções urbanísticas.
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O envolvimento de Carlos Nelson com o Catumbi remonta a 1964, numa curta e, segundo ele, desastrosa, experiência na favela do bairro, através da FAFEG. Um pouco depois, no início da década de 1970, a Quadra presta uma consultoria em arquitetura e urbanismo à Associação de Moradores, que lutava, desde meados da década anterior, contra a implantação de um plano de renovação urbana que destruíria o bairro. [...]
Sofrendo durante muito tempo com inundações, no final dos anos 1950 já se encontrava saneado e, com a abertura, em 1961, do túnel Santa Bárbara, pered a caracteristíca de excentricidade e adquire uma localização estratégica, na ligação entre o centro de negócios e a área mais valiosa da cidade a Zona Sul. Foi o suficiente para começarem a surgir pressões de interesses financeiros e politícos sobre o bairro. Em 1965, um plano urbanístico para o Estado da Guanabara, conhecido como Plano Doxíadis, indica o Catumbi como uma das áreas a receber “tratamento especial” por parte do governo estadual, isto é, propícia para sofrer um processo radical de renovação urbana.
Um discurso urbanístico de caráter técnico-científico justificativa a destruição imposta pelo governo ao Catumbi, com a argumentação da necessidade do projeto viário e também acusando o bairro de ser decadente e obsoleto, possuidor de qualidades urbanísticas indesejáveis.
Tudo o existia dentro dele, incluindo ruas, casas, equipamentos urbanísticos, pessoas e suas atividades deveria desaparecer para dar lugar a estruturas e modos de vida mais modernos e, naturalmente, a novos moradores que tivessem o ‘status’ adequado para consumi-las e praticá-los. Em suma, o Catumbi como modelo urbano era visto como superado, carregado de negatividade e indesejado (SANTOS e VOGEL,1981: 8-9)
OLIVIERI, Silvana Lamenha Lins. Quando o cinema vira Urbanismo: o documentário como ferramenta de abordagem da cidade. 2007. 208 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo)-Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUFBA, Salvador, 2007, grifo da autora.