1958
Brasil, Distrito Federal
Fato RelevanteIdiomas disponíveis
Português
Colaborador
Karine Souza
Citado por: 1
Os moradores da antiga Vila Sarah Kubitshek passaram por um processo de remoção e foram realocados à 25 km do Plano Piloto, na localidade que foi nomeada Taguatinga, a primeira cidade-satélite de Brasília.
James Holston, 1989
[...]
A primeira cidade-satélite de Brasília começou com a tomada de posse de um terreno perto da entrada da Cidade Livre. Já descrevi as causas de tais ocupações. Chegaram a um auge nas primeiras semanas de junho de 1958, quando, em poucos dias, entre 4 mil e 5 mil flagelados da seca do Nordeste chegaram à Cidade Livre em busca de trabalho. A Novacap ordenou às forças de segurança (o GEB) que levantassem barreiras na estrada para impedi-los de entrar. Em vez de irem embora - como se tivessem algum lugar para onde ir -, esses migrantes desesperados iniciaram uma ocupação de terra, montando um acampamento improvisado do outro lado da barreira.
Em poucos dias, a frente da favela, dando para a estrada, ostentava cartazes anunciando "Salve a Vila Sara Kubitschek", "Os moradores da Vila Sara agradecem", "Viva dona Sara" e assim por diante. Com esses cartazes, o grupo de comando da favela iniciou uma engenhosa estratégia para resistir a um esperado assalto pelo GEB. A estratégia tinha dois elementos. Primeiro, os favelados escolheram o nome da mulher do presidente Kubitschek, esperando que a Novacap hesitasse em atacar uma vila dedicada à primeira-dama. Em segundo lugar, propagaram o rumor de que, "por ordem de dona Sara", quem quer que cercasse um terreno na vila ganharia direitos legais a ocupá-lo; daí as palavras "os moradores agradecem, dona Sara", por supostamente ter autorizado a favela e a distribuição dos terrenos. Esse estratagema foi um xeque-mate na Novacap: quase imediatamente o lugar foi invadido por tamanha quantidade de pioneiros da Cidade Livre, dos acampamentos de construção, e de outras favelas - todos atrás de seu lote na terra prometida -, que as forças de segurança não tinham meios para reagir. Mais ainda, depois deste êxito inicial, a ausência de uma ação da polícia fez com que a favela parecesse ter até mesmo algum tipo de autorização oficial.
Esta eficiente estratégia seria repetida muitas vezes nas várias lutas pelo direito de residência. Com poucos recursos, a associação baseou sua estratégia naquilo que era livre para manipular - os símbolos do governo -, pois supunha, corretamente, que as autoridades teriam mais dificuldades em marchar contra seus próprios emblemas. A associação foi especialmente eficaz no uso de nomes, exatamente como o próprio governo faz, para proclamar a existência de uma proteção de um benfeitor presuntivo. Mais do que isso, entendeu o poder da nominação para inventar tais relações. Assim pôs a ocupação de terra sob a proteção da primeira-dama, com o uso não autorizado de seu nome como epônimo. Fazendo isso, os favelados esperavam tanto ficar investidos com a sua aura de legitimidade quanto forçar o regime a reconhecer como legítimos os atos cometidos sob ela.
Tendo afastado a ameaça de uma retaliação imediata por parte do GEB, a associação de moradores intensificou suas reivindicações de legalização com a única pessoa cujo próprio uso do carisma para legitimar a construção de Brasília fazia especialmente vulnerável a essa estratégia: Juscelino Kubitschek iria jantar na Cidade Livre, na Churrascaria JK (outro exemplo dessas práticas de nominação), planejou uma manifestação maciça para a ocasião. No ato público, mais uma vez apresentou as reivindicações dos favelados na linguagem de demonstração dos discursos de legitimação oficial de Brasília: "Fundamos a Vila Sara Kubitschek", "Viva o presidente Juscelino", "Queremos ficar onde estamos" e assim por diante.
Kubitschek mandou um dos diretores da Novacap com a resposta do governo: a administração tinha decidido criar uma cidade-satélite, a 25 quilômetros do Plano Piloto, onde migrantes de recursos muito modestos teriam direito de adquirir um terreno e para o qual a Novacap iria remover todos os favelados que estavam residindo no território da construção. Assim, a primeira cidade-satélite de Brasília foi designada como o lugar, a considerável distância do Plano Piloto, onde acomodar os favelados de Brasília. No início o grupo de comando recusou a oferta da Novacap, argumentando que o isolamento do satélite para além das imediações da Cidade Livre e do Plano Piloto seria desastrosa em termos econômicos. A Novacap, por sua vez, enfatizou as vantagens de uma posse legítima da terra. Além disso, ofereceu-se para transferir qualquer pessoa sem nenhum custo, reconstruir lá seus barracos, iniciar obras de serviços urbanos básicos e providenciar assistência médica e transporte para o serviço (Ernesto Silva, entrevista, Brasília, 1980). Por fim, depois de diversos confrontos violentos, a resistência à remoção acabou. Em dez dias, a Novacap transferiu 4 mil favelados e seus barracos cuidadosamente desmontados para Taguatinga, a primeira cidade-satélite de Brasília.
Quando esta cidade foi inaugurada, em 5 de julho de 1958, a Novacap já tinha estabelecido e nomeado uma administração local para supervisionar a distribuição de lotes e cuidar dos serviços urbanos. Embora muitos clubes, associações ligadas à Igreja, e uma associação comercial filiada à da Cidade Livre tenham surgido na cidade-satélite, nenhum estava especificamente organizado em torno de serviços urbanos ou empenhado em ações políticas. A mobilização política alcançada pela associação de residentes da Vila Sara Kubitschek não sobreviveu à transferência de seus membros para Taguatinga.
Cesar Trajano de Lacerda, 2000
"Foi quando o presidente criou as cidades-satélites, sendo a primeira Taguatinga...
Esta invasão, os primeiros habitantes de Taguatinga, foram ocupada por essa invasão da Cidade Livre. E cada caminhão que trazia as famílias para dentro do cerrado lá de Taguatinga, que era um verdadeiro cerrado. O pessoal da Novacap, os trabalhadores da Novacap pegavam aquele bagulho tudo, das famílias e jogavam em cima do caminhão e... Taguatinga. A estrada de Taguatinga tinha sido aberta recentemente, era cada uma poeira que o caminhão passava e a gente ficava meia hora para poder andar, não enxergava nada."
Há outra versão sobre a formação de Taguatinga, que, certamente, não se opõe a esse relato, pelo contrário, funde-se como uma amálgama capaz de unir as várias histórias que existem sobre esse momento de conjunção e criação das cidades em Brasília. O advogado César Trajano, que viria ser Deputado Federal posteriormente, tem informações significativas sobre as invasões na Cidade Livre e a formação da cidade que seria seu colégio eleitoral no futuro. Intitulando-se o primeiro líder comunitário de Brasília, o goiano de Pires do Rio entrou, conforme suas palavras, "em entendimento" com os candangos que pouco a pouco, aglomeravam-se às margens da BR 040, estrada para Goiânia. Em pouco tempo, os barracos aumentavam e, com eles, candangos que, em volta das fogueiras, cantavam e se divertiam na noite, mesmo sem a real possibilidade de um chão que pudessem chamar de seu. Trajano percebia nos cânticos do candango a vontade real de conseguir um terreno, onde pudessem fabricar seu barraco e trazer sua família. Sem nome, mas já com um grande número de barracos, a invasão era invariavelmente ameaçada de remoção. Os candangos pediram ajuda a Trajano, homem de fala fácil e espírito voluntarioso. Era preciso, então, de uma tática bem pensada. Na posterior chegada do Viscount que trouxe o presidente, Trajano foi ao seu encontro, com o intuito de relatar as condições precárias daquelas pessoas, de alguma forma, cúmplices no sonho de construir a capital. Onde é esse local? Perguntou o presidente. Lá na vila... Sarah Kubitschek! Respondeu Trajano, batizando a invasão com nome da esposa de Juscelino. O óbvio estratagema deu certo, Juscelino incumbiu-se de conversar com os administradores da cidade, na intenção de conseguir um local de melhores condições para aquela gente. Uma semana depois, numa reunião com alguns desses administradores numa churrascaria na Cidade Livre, Juscelino deparou-se com uma manifestação. Nela, uma faixa chamava a atenção: "Nós, moradores da Vila Sarah Kubitschek pedimos uma solução". A solução encontrada foi a remoção para a primeira cidade satélite, insólita até na escolha do nome: "Então, qual o nome do local onde ia levar esse povo? O nome que foi falado na hora era Tabatinga. Tabatinga, se eu não estou enganado, significa terra branca. E ali perto tinha um areal, também de terra branca, onde tirava o saibro, tinha até o caulim, também. E por isso chamava região de Tabatinga. E o córrego, que passava ali também, era o córrego Tabatinga. Mas esse primeiro povo que foi para lá entendeu Taguatinga, que significa ave branca, e lá nunca teve ave branca. E tomou o nome, então, de Taguatinga."
LACERDA, Cesar Trajano... op. cit. p.3.
SILVA, H. Paisagem cotidiana, práticas e representações do Núcleo Bandeirante/Cidade Livre.(Anos 50 do séc. XX - Tempo Presente) De "espaço provisório" a um lugar de experiência identitária. Universidade de Brasília. PPGHIS (Programa de Pós Graduação em História). Brasília, DF, 2011.
Aldo Paviani, 1996
A grande dificuldade foi selecionar os recebedores de lotes na nova urbe, uma vez que estava previsto o acesso a eles apenas para trabalhadores e servidores de baixa renda, e muitos favelados estavam excluídos desses critérios formais. Assim, a cidade já nasce com as chamadas "invasões" (Vila Dimas e Vila Matias), pois havia muitos sem teto que não se adequavam à legalidade instituída para a distribuição de lotes, ou seja, a cidade forjava já no seu nascimento a desigualdade social (...) a criação de Taguatinga era apenas uma mudança geográfica de sua condição de excluídos.