1961
Estados Unidos
PublicaçãoIdiomas disponíveis
Português
Colaborador
Ícaro Vilaça/Diego Mauro
Guilherme Wisnik, 2006:
“Jornalista e importante ativista política – em particular como defensora de bairros tradicionais da cidade e opositora à Guerra do Vietnã -, Jane Jacobs fundou uma corrente da antropologia urbana que elegeu a diversidade espontânea da rua como símbolo de vitalidade, em contraposição à tabula rasa do planejamento moderno e ao modelo suburbano das “cidades-jardim, defendido por Lewis Mumford. Mais diretamente, ela defendia a diversidade de ocupação e o uso misto das quadras, contrapondo-se ao vasto programa de renovação das áreas centrais nas cidades norte-americanas, em que bairros históricos eram arrasados pelo espírito empreendedor e tecnocrático do planejamento urbano no pós-Segunda Guerra Mundial, tendo como símbolo máximo as vias expressas de Robert Moses e seus grandes projetos de renovação urbana através de conjuntos habitacionais. [...]
Dada a combinação ímpar entre a acidez irreverente e o acento doméstico de sua prosa, Jacobs teve o poder de galvanizar um ativismo comunitário semp recedentes em Nova York, preparando o terreno para o surgimento da contracultura, que marcou decisivamente o ambiente político-ideológico dos anos 60 e 70 no mundo, tendo Manhattan como um dos seus centros geradores.
Com a intimidade de uma mãe zelosa que conhece as miudezas do cotidiano de seu bairro, o Greenwich Village, ela descreve o cenário cambiante de personagens que circulam na rua durante um ciclo de 24 horas. Como observou Marshall Berman, a riqueza dessa ‘montagem urbana’, guardadas as devidas proporções, se inscreve na tradição moderna de Baudelaire, James Joyce e Dostoiévski. Assim, em seu excurso sobre a modernidade, Berman toma o impulso transgressor de Jacobs para descrever uma retomada, nos anos 60, do ‘genuíno’ ímpeto moderno do século 19, propondo o abandono das bandeiras dicotômicas das vanguardas e suas realizações brutais em meados do século 20.
Em sua análise, a obsessão de Le Corbusier em “matar a rua” prefigura o espírito autofágico da modernidade, sempre empenhado em sacrificar aquilo que lhe deu vida. Algo que vem a se realizar efetivamente através de Robert Moses, nos anos 50 e 60. Como um Fausto encarnado, ele personifica o ‘mundo da via expressa’. É, portanto, para Berman, o símbolo da modernidade em seu estágio predatório. O momento em que a modernidade passa a devorar incontrolavelmente suas conquistas anteriores, transformando-as em toneladas de cimento e fumaça.
Por outro lado, as ideias de Jacobs também forneceram munição preciosa à ideologia conservadora da ‘Nova Direita’ norte-americana, que tomou sua defesa da cidade ‘tradicional’, pré-moderna, para legitimar um antimodernismo fundado nos valores da família (branca e liberal). Eis aí o outro lado da mesma moeda: a ‘rua’ humana e pluralista de Jacobs não deixa de ser o canto do cisne de uma era que terminava: a redoma protegida de uma Manhattan anterior à crise de estagnação econômica ocorrida nos anos 70 e 80 e à imigração maciça de populações negras e hispânicas desempregadas, com a correlata explosão de violência e erosão da sociabilidade urbana. O que fez de qualquer aposta ‘bem-intencionada’ na proteção comunitária vinda da rua, como reconhece Berman, um idílio romântico. Daí em diante, seu ideal de vizinhança e diversidade étnica seria vendido no mercado institucionalizado das diferenças, isto é, na progressiva museificação estilizada de identidades históricas e multiculturais que passou a dominar o espetáculo urbano desde então.”
Fonte(s): WISNIK, Guilherme. Morte e Vida de Jane Jacobs e Robert Moses in Estado Crítico: à deriva nas cidades. São Paulo: Publifolha, 2009. Pp 112-117
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