Leituras
Textos
- Apresentação
2016
- Brasília: segregação e utopia na cidade moderna
- Notas sobre o ponto de inflexão "Aprendendo com Las Vegas"
- Notas sobre o Moderno: a(s) Carta(s) de Atenas e a emergência do Team X
- Notas sobre Ponto de Inflexão “Brás de Pina”
2009
- Cronologia do Pensamento Urbanístico
- Teoria Historiográfica e a Cronologia do Pensamento Urbanístico.
- Historiografia de Resistências ao Pensamento Urbanístico Hegemônico
Paineis
- Poster XIV Seminário de História da Cidade e do Urbanismo - SHCU 2016, FAU/USP - São Carlos
- Poster XIII Seminário de História da Cidade e do Urbanismo - SHCU 2014, FAUNB/UnB - Brasília
- Cronologia do Pensamento Urbanístico: recorte contemporâneo (Icaro Villaça e Diego Mauro - bolsistas IC)
Cronologias
- Cronologia das Cidades Utópicas (Adriana Caúla - anexo da tese de doutorado)
- Cronologia dos Documentários Urbanos (Silvana Olivieri - anexo da dissertação de mestrado)
- Cronologia da Habitação Social (Leandro Cruz - anexo da dissertação de mestrado)
- Cronologia de uma cidade enunciada (Osnildo Wan-Dall - Anexo da dissertação de mestrado)
Cronologia do Pensamento Urbanístico: recorte contemporâneo
Ícaro Vilaça Nunesmaia CerqueiraDiego Mauro Muniz Ribeiro
Sobre a pesquisa
A Cronologia do Pensamento Urbanístico surgiu da colaboração de duas equipes de pesquisa, uma na UFRJ e outra na UFBA. O desejo de mapear e entender as redes complexas que constroem o pensamento urbanístico levou à criação de uma plataforma on-line que reúne dados referentes a projetos, publicações, eventos e quaisquer outros fatos que sejam considerados relevantes para a área.
O site atual da pesquisa foi concebido como um portal que, além de apresentar os dados cronologicamente, permite que o usuário estabeleça recortes do conteúdo, o que favorece uma grande diversidade de leituras e entendimentos das relações entre os dados. A apresentação em uma linha temporal permite, entre outras coisas, comparar informações; identificar as temáticas dominantes em um período ou outro; visualizar a circulação de conceitos e dos próprios técnicos e artistas de uma região a outra ou no interior de um mesmo país.
Do ponto de vista teórico-metodológico, a Cronologia do Pensamento Urbanístico auxilia o trabalho de revisão historiográfica do campo do Urbanismo no Brasil, ao permitir questionar de modo preciso – pelos dados que divulga e permite comparar - a pertinência e/ou adequação do uso de noções como transferência, modelo e/ou influência: conceitos que são tributários de uma visão linear, evolutiva, icônica e fechada de história que continuam a balizar um bom número de trabalhos da área, por carência de cotejamentos finos e de instrumentos que evidenciem seus contra-sensos e limites.
Revisando a metodologia de trabalho
O suporte adotado para a apresentação da Cronologia do Pensamento Urbanístico é uma tabela onde os dados são organizados temporal e espacialmente. A opção pela apresentação cronológica, entretanto, permite que o usuário construa seus próprios recortes a partir da supressão das linhas (regiões geográficas) e/ou seleção das colunas que se deseja comparar (correspondentes aos anos). O conteúdo também pode ser organizado a partir dos filtros correspondentes às diversas categorias (projetos, publicações, eventos e fatos relevantes) e/ou marcadores (tais como habitação, movimentos sociais urbanos, participação, utopias urbanas, etc.). É importante ressaltar, portanto, que a cronologia é apenas uma das formas de apresentação histórica nas quais trabalhamos.
As ferramentas descritas acima foram pensadas para evidenciar a complexidade das relações entre os dados, na medida em que permitem estabelecer recortes muito distintos, que evidenciam determinados debates e estimulam a produção de múltiplas leituras.
Os bolsistas de iniciação científica são responsáveis pela alimentação do banco de dados da pesquisa, no intuito inicial de possibilitar que os usuários do site pudessem elaborar entendimentos sobre a circulação de idéias no campo do Urbanismo. Num primeiro momento da pesquisa, a metodologia do trabalho priorizava o preenchimento cronológico dos dados, onde cada um dos bolsistas PIBIC era responsável por um ano específico, e buscava obter o máximo de documentos e informações desse período. Com o avanço da pesquisa, percebeu-se que esta forma de trabalhar impossibilitava a compreensão dos contextos dos debates, uma vez que as possibilidades de leitura do conteúdo se reduziam a um período de tempo relativamente curto, mesmo com as reuniões em que se discutiam o conjunto dos anos em estudo pelos bolsistas (referente a três ou quatro anos específicos).
Pode-se dizer, neste caso, que o entendimento a respeito das relações entre os dados (diálogos, filiações e contraposições) se limitava ao eixo vertical.
Imagem 01. Contrapostos: no mesmo ano em que era inaugurado no Rio de Janeiro o Conjunto Pedregulho, projetado para uma população de 2.400 pessoas (de acordo com os princípios da Ville Radieuse proposta por Le Corbusier), o austríaco Hundertwasser criticava duramente a massificação e o funcionalismo defendidos pelos arquitetos modernos em seu “Manifesto do Mofo”. Fonte: Cronologia do Pensamento Urbanístico. Disponível em: <http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br>. Acesso em: 10/03/2010.
Visando potencializar e tornar mais abrangente os entendimentos sobre as possíveis articulações entre os verbetes que estavam sendo produzidos, o trabalho de pesquisa passou a ser organizado por décadas, e cada bolsista começou a planejar os verbetes que seriam desenvolvidos prioritariamente a partir das conexões existentes naquele recorte temporal.
Nesse momento da pesquisa, passa a ser favorecido um tipo de leitura do conteúdo que privilegia o eixo horizontal, permitindo que se aprofundem temas como habitação, movimentos sociais urbanos ou participação, que passam a ser vistos de forma mais abrangente. Nessa escala temporal, os diálogos, as filiações ideológicas, formais ou estéticas se tornam mais evidentes, bem como as contraposições e/ou resistências aos processos ensejados pelo pensamento hegemônico no campo do urbanismo.
Imagem 02. Este recorte acena para a complexidade do pensamento que norteou a produção habitacional a partir dos anos 50. Dos enormes conjuntos habitacionais propostos pelos modernos ao vazio contemporâneo, que se contenta com a produção de condomínios fechados e escassas intervenções em favelas. Fonte: Cronologia do Pensamento Urbanístico. Disponível em: <http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br>. Acesso em: 10/03/2010.
Pouco a pouco, a preocupação em oferecer aos usuários um banco de dados completo para que seus recortes pudessem ser elaborados cedeu lugar a uma postura em que os próprios pesquisadores passaram a se colocar no papel de investigar as possibilidades de leitura do conteúdo.
Nesse contexto, ficou claro que as leituras a partir dos eixos vertical e horizontal não abrangiam a complexidade da circulação das idéias e suas reverberações. Surgiu, portanto, a necessidade de enfatizar as associações entre os verbetes e acrescentar ao site ferramentas que possibilitassem desenvolver entendimentos mais complexos, capazes de abarcar relações que ainda não haviam sido exploradas. Nesse momento, o próprio trabalho de pesquisa passou a se articular com a perspectiva do pensamento em rede.
Metodologicamente, passamos a estruturar a produção dos verbetes a partir das associações que emergem do processo de pesquisa. Os bolsistas estão trabalhando a partir de alguns recortes temáticos, o que favorece um entendimento das relações entre os verbetes. Atualmente, estamos investigando os seguintes temas: Habitação, Favelas, Movimentos sociais urbanos, Participação, Resistências, Megaestruturas e Utopias urbanas.
Leituras sobre o tema Habitação, a partir da comparação de dados da Cronologia do Pensamento Urbanístico
A partir de alguns dados apresentados na plataforma on-line da pesquisa, dentro do recorte contemporâneo (1950-2000), podemos ter uma idéia da complexidade que envolve os debates relacionados ao tema Habitação, a partir de algumas proposições teóricas e experiências concretas.
O recorte indicado na Imagem 02 apresenta, em 1953, a realização do IX CIAM, na cidade francesa de Aix-en-Provence. Nesse momento já se manifestavam críticas à própria instituição do CIAM, bem como aos seus métodos e pensamentos dogmáticos. Essas críticas foram lideradas por um grupo de jovens arquitetos que passou a ser chamado de Team X. Eles seriam encarregados de organizar o próximo congresso, na perspectiva de formular uma Carta do Habitat, em contraponto direto à Carta de Atenas. Mais adiante, esse desejo se mostrou inviável, já que a formulação desta carta acabaria levando-os a cair na armadilha de estabelecer receitas e modelos homogeneizadores, tais como os da Carta de Atenas.
Em 1956, o projeto de Lúcio Costa, vencedor do concurso para o plano-piloto de Brasília, evidencia um plano baseado nos princípios de Le Corbusier e da Carta de Atenas, ao passo que esse modelo urbanístico – fortemente pautado pelo zoneamento funcional - já vinha sendo duramente criticado desde o CIAM de 1953.
Em 1958, o austríaco Hundertwasser aprofunda a crítica ao funcionalismo e aos enormes conjuntos habitacionais propostos pelos arquitetos modernos em seu Manifesto do Mofo:
“O princípio das favelas – isto é, uma arquitetura de proliferação anárquica – é que deve ser melhorado e tomado como ponto de partida, e não a arquitetura funcional. A arquitetura funcional revelou-se um caminho errado, exatamente como a pintura com uma régua. Nós nos aproximamos rapidamente de uma arquitetura impraticável, inútil e finalmente inabitável.
[...]
É tempo para que as pessoas se revoltem contra uma situação que as condena a viver confinadas em latas de sardinhas, da mesma maneira que as galinhas e os coelhos em gaiolas, que são totalmente estranhas à sua natureza.
[...]
A mania de destruição dos arquitetos funcionalistas é bem conhecida. Eu citaria Le Corbusier que queria arrasar Paris e reconstruí-la com os monstruosos imóveis retilíneos.”
No mesmo ano em que se publica o Manifesto do Mofo, é inaugurado no Rio de Janeiro o Conjunto Pedregulho, de Affonso Eduardo Reidy, projetado para 2.400 pessoas. O Pedregulho foi apenas um dos numerosos edifícios habitacionais realizados por arquitetos entusiasmados com o conceito de Ville Radieuse proposto por Le Corbusier. Entre os exemplos mais marcantes, podemos destacar os Conjuntos Miguel Aleman e Nonoalco-Tlatelolco, do arquiteto mexicano Mario Pani (inaugurados em 1949 e 1966, respectivamente); 23 de Enero e El Paraíso (1957), do venezuelano Carlos Raul Villanueva; a própria Unité d’habitation Marseille (inaugurada em 1957) e finalmente, o Conjunto Habitacional Corviale, projeto do arquiteto Mario Fiorentino construído em Roma em 1982.
Imagem 03. Conjunto Pedregulho. Fonte: BONDUKI, 2000.
Imagem 04. Avesso aos conjuntos residenciais modernos, Hundertwasser propunha que os moradores se apropriassem artisticamente desses edifícios, reconectando-os à natureza. Fonte: RESTANY, 2003.
O texto que apresenta o Conjunto 23 de Enero, retirado da revista francesa L'Architecture D'Aujourd'hui (outubro de 1956) é bastante significativo com relação à visão dos planejadores sobre a cidade pré-existente:
“A Unidade Residencial responde ao programa de destruição de zonas insalubres e de relocação de seus habitantes para uma situação saudável, proporcionando um modo de vida normal a uma população até então desfavorecida.
O conjunto se constitui de quatro unidades de vizinhança, agrupando no total 12 744 pessoas, ou seja, uma densidade de 400 habitantes por hectare (...)”
Em 1961, o urbanismo moderno volta a ser severamente criticado, agora por Jane Jacobs, autora do livro “Morte e vida das grandes cidades”. Ela descreve seu trabalho como um ataque aos fundamentos do planejamento e da reurbanização vigentes no momento. Jacobs combate os ditames modernos de grandes áreas verdes e edifícios isolados, assim como o zoneamento de funções e a segregação entre a circulação de pedestres e veículos. Propõe retomar a observação das cidades reais, as quais os planejadores modernos ignoravam e defende a diversidade dos usos de forma mais complexa e densa.
A década de 70 é marcada pela demolição do conjunto Pruitt-Igoe. Concluído em 1956, concentrava 2.870 unidades dispostas em 33 edifícios de 11 andares. O terreno escolhido era uma área deteriorada na periferia, anteriormente ocupada por cortiços. Apenas alguns anos após sua inauguração, já apresentava sinais de má conservação, vandalismo, crime e um enorme número de unidades desocupadas. Em 1972, a Autoridade de Habitação de St. Louis demoliu três dos edifícios, e no ano seguinte, de comum acordo com o Departamento de Alojamento e Desenvolvimento Urbano dos Estados Unidos, o Pruitt-Igoe foi declarado irrecuperável, e foram arrasados os edifícios restantes. A demolição de 1972 representou, para Charles Jencks e outros críticos, o fim do modernismo na Arquitetura.
Dez anos após a icônica demolição do Pruitt-Igoe, era inaugurado na Itália o Conjunto Corviale, uma das mais radicais experiências de habitação já realizadas. Isolado na periferia sul de Roma, o enorme edifício visava integrar 1246 unidades habitacionais, igreja, centro comercial, cultural, posto de saúde, escola e escritórios. A despeito dos temas polêmicos que envolveram a construção desses conjuntos, seu autor declarou, à época da elaboração do projeto:
“O projeto está em investigação para uma nova dimensão do Habitat, sendo capaz de se colocar como uma alternativa radical à dispersão da periferia atual. [...] O Corviale é uma grande Unité d’Habitation, um edifício único que se desenvolve em continuidade ao longo de um comprimento de cerca de 1 km e mesmo que, se do ponto de vista físico, ele seja apenas um edifício gigantesco, de fato também contém e expressa em sua arquitetura a riqueza e complexidade das relações próprias da cidade.”
Imagem 05. Demolição do Pruitt-Igoe. Fonte: JENCKS, 1977.
Imagem 06. Conjunto Habitacional Corviale, em Roma. Fonte: Wikimedia Commons. Disponível em: <http://commons.wikimedia.org>. Acesso em: 20/03/2010.
Ainda em 1982, registra-se a inauguração da cidade de Seaside (Estados Unidos). Com o esvaziamento do discurso, e mesmo de uma prática consistente relacionada à habitação, surgem cidades-cenário periféricas, planejadas a partir dos princípios do “New Urbanism”. Os moradores passam a ser selecionados a partir de seus perfis sócio-econômicos, visando “superar” os conflitos que emergiram nas experiências passadas. Apresentadas como resposta à violência, ao caos das grandes cidades e ao crescimento exponencial das favelas, essas experiências rapidamente são exportadas para outros locais, a exemplo do Brasil.
As relações de diálogos, filiações e contraposições entre os exemplos aqui pontuados não somente colocam em xeque a possibilidade de pensarmos numa “evolução histórica” do tema da Habitação, como salientam as idas e vindas dos processos de circulação das idéias. Trata-se, portanto, de processos não-lineares, cuja complexidade deve ser objeto permanente de investigação e de crítica.
Bibliografia
Cronologia do Pensamento Urbanístico. Disponível em: <http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br>. Acesso em: 10/03/2010.
Revista Módulo N° 8, publicada em 1957.
Revista L'Architecture D'Aujourd'hui, nº 67-68, out 1956, p. 88-92.
FIORENTINO, Mario. Relazione allegata al Piano di Zona n. 61 Corviale, cit. in COCCIA, F., COSTANZO, C. Recupera Corviale, Rome: Kappa, 2002. p. 47-48.
BONDUKI, Nabil (Org.). Affonso Eduardo Reidy. Sao Paulo: Editorial Blau/Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 2000.
RESTANY, Pierre. Hundertwasser – El pintor-rey com sus cinco pieles. Germany: TASCHEN, 2003.
JENCKS, Charles. The language of post-modern architecture. New York: Rizzoli, 1977.
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.